Depoimento – Os camponeses: notas sobre rastros, indícios e experiências de pesquisa

19/01/2020 17:31

(Revista Maracanan, n. 23, jan.-abr. de 2020)

        Inicio este depoimento com uma lembrança pessoal marcante. Quando fui contratado como professor para trabalhar na rede pública do município de Viamão, a poucos quilômetros de Porto Alegre, em 1984, fui submetido a uma maratona para juntar documentos para ser contratado como “funcionário público municipal”. Além de exames médicos, era necessário tirar chapa do pulmão (a abreugrafia, para ver se não era tuberculoso) e assinar um documento comprometendo-se a cumprir as leis e atender ao público com “urbanidade”. Perguntei à secretária de Recursos Humanos o sentido dessa palavra, e ela respondeu secamente, afirmando que o funcionário público não poderia ser um “bicho do mato!”. Fiquei pensando por que as pessoas evitariam ou se envergonhariam de uma “ruralidade”… O objetivo deste texto é o levantamento e a reflexão sobre um conjunto de experiências de vida e de pesquisa. Essas experiências são parte de uma trajetória muito particular, mas acredito que são compartilhadas por muitos historiadores e pesquisadores sociais de minha geração. A ideia de um depoimento pessoal me atraiu para esse tipo de relato, que procura agrupar um conjunto de reflexões, dificuldades e perguntas levantadas ao longo da minha trajetória de estudos e pesquisas sobre o campesinato no Sul do Brasil.

       Circulando por estradas brasileiras nas décadas de 1980 e 1990, tínhamos uma visão recorrente: eram pequenos acampamentos improvisados em barracas construídas com bambus e lonas pretas, localizadas ao longo da faixa de domínio das BRs. Os acampamentos de sem-terras, que começaram a se formar desde o pioneiro ajuntamento de Encruzilhada Natalino, em 1978, no norte do Rio Grande do Sul, multiplicaram-se por todos os estados da Federação. Debaixo de lonas viviam homens, mulheres e crianças com desejo de lutar para recuperar suas terras, recusando-se a rumar para a ilusão urbana que, já sabiam, não significaria melhoria de vida. O Brasil vivia os anos finais da ditadura militar, período de forte transformação no meio rural, quando muitos estudiosos diziam que, após o impacto modernizador das políticas agroexportadoras, com a reversão da população agora majoritariamente urbana, a questão agrária era um fato superado. A pauta deveria ser a extensão da CLT e da sindicalização dos trabalhadores rurais. Essa noção era baseada em um diagnóstico incorreto, imaginando a morte definitiva do campesinato e a completa industrialização da agricultura.

        O planejamento dos economistas da ditadura e o grande capital não combinaram a história com os teimosos camponeses. A redemocratização da sociedade brasileira será movida por forte explosão dos movimentos sociais, muitos destes vindos do campo, com a histórica pauta da reforma agrária e da luta pelo acesso à terra. Grandes momentos da história de nosso país, como a conjuntura que precedeu o golpe de 1964 ou o processo da Assembleia Nacional Constituinte, entre 1987 e 1988, ou o último golpe parlamentar de 2016, tiveram a questão agrária como item central no grande debate político. Quem são os camponeses brasileiros? Essa pergunta pode ser dirigida a diferentes épocas de nossa história, e sempre há dificuldades e problemas conceituais e heurísticos para enfrentar a situação. Se formos pensar em personagens e grupos sociais tratados pela historiografia com as mais diferentes e peculiares situações, encontraremos caboclos, caiçaras, pescadores, colonos, ervateiros, lavradores, caipiras, matutos, tabaréus, quilombolas, índios aldeados, cafuzos etc. As denominações frequentemente são regionais e originam-se em visões desqualificadoras e pejorativas dessas populações, usualmente associando-as à ignorância, às carências e à barbárie. Muitas lutas e resistências foram travadas ao longo de séculos de nossa trajetória para a positivação desses nomes, para o aparecimento de identidades locais que afirmaram essas denominações. Mas o que há de comum entre eles? As diferentes denominações ou identidades citadas representam comunidades de trabalhadores rurais familiares, com diferentes graus de integração à indústria e aos mercados capitalistas. A dificuldade de serem denominados “camponeses” tem problemas de origem conceitual e política. Por muito tempo a literatura especializada das ciências humanas considerou o camponês como um tipo clássico, encontradiço na Europa ocidental, em algumas regiões deste território e em condições históricas muito específicas. O campesinato francês pós-Revolução sempre foi um modelo adotado para esse debate, em confronto com o meio agrário inglês, que chegou à época contemporânea com a erradicação de boa parte desse grupo social, que teve seu acesso à terra inviabilizado pelos enclosures (cercamentos) e por todo o processo estudado por Marx no capítulo XXIV de O capital. A ideia de uma classe relativamente uniforme, trabalhadora e ao mesmo tempo proprietária (existente no meio rural como uma sobrevivência de antiga sociedade, representando uma insuficiência de desenvolvimento do capitalismo e apegada a modos tradicionais de processos de trabalho) já não é mais dominante, nem ajudaria a entender as condições sociais do campesinato. Há que se identificar a incrível capacidade de adaptação das formações camponesas aos mais diferentes processos de modernização capitalista que, por muitas vezes, anunciaram a sua extinção.

       Ao longo do século XX a relevância política e social do campesinato extraeuropeu (particularmente da Rússia, da China, do Vietnã, da África e da América Latina) recolocou em debate a importância desse grupo social e sua capacidade de adaptação e recriação, seu potencial conflitivo em diferentes sociedades, em todos os países do mundo. Os camponeses mexicanos, peruanos, colombianos e bolivianos mostraram, em diferentes momentos, como determinadas experiências e formas de atuação milenares são importantes ainda hoje para a subsistência de suas comunidades. O campesinato africano foi protagonista de importantes lutas anticoloniais nas décadas de 1950 a 1980. As guerras de independência da Argélia, do Quênia, da Angola, do Moçambique e da Guiné foram marcos importantes para a mudança da política mundial e para a derrocada do colonialismo.

       O campesinato brasileiro não é parte distinta desse contexto. Em que pesem suas particularidades históricas, sua heterogeneidade e suas diferentes formações (tanto quanto ocorre em outros países latino-americanos), o campesinato brasileiro possui uma trajetória complexa, pontuada por lutas de resistência, formas de adaptação e estratégias de sobrevivência.

O campesinato imigrante

No Sul e no Sudeste do Brasil foi implantado um projeto de colonização baseado na pequena propriedade. A partir da recepção de diferentes levas de imigrantes europeus desde a primeira metade do século XIX, governos do Império e da Primeira República fomentaram a criação de uma camada social de pequenos proprietários nos três estados sulinos, no Espírito Santo e em muitas regiões de São Paulo, do Rio de Janeiro e da zona da mata mineira. Os núcleos coloniais de pequenos proprietários imigrantes respondiam a diferentes demandas do período. Vários ministros e parlamentares do Império defenderam a criação dessa camada social intermediária no intuito de significar um “enxerto” para dar “energia” aos lavradores já existentes, para dinamizar o abastecimento de gêneros ao mercado interno, consolidar a ocupação sobre territórios de fronteira, ajudar na regularização de vias de comunicação, servir de “ponteira” para frentes de expansão agropastoril. Para o Exército e para a Igreja, os imigrantes aumentariam os contingentes para fornecer “recrutáveis” às duas instituições.

       Na segunda metade do século XIX, as regiões já consolidadas de colonização ajudaram na atração da grande corrente imigratória, principalmente proveniente do sul da Europa e do Levante, de italianos, espanhóis e sírio-libaneses. Dificilmente as lavouras de café de São Paulo atrairiam tanta gente para trabalhar no sistema misto de parceria (colonato) se não houvesse um contingente anterior de colonos assentados no Sul do Brasil. Em minha pesquisa de mestrado, sobre a política de colonização do Império, tive acesso a fontes reveladoras para a reconstrução dos passos tomados por indivíduos e famílias e suas estratégias para emigrar e providenciar a instalação no novo território. Além dos documentos produzidos pela administração colonial, como relatórios e correspondências entre diretores de colônias, chefes das Inspetorias Especiais de Terras e Colonização, presidentes de província e ministros da Agricultura, foi possível acessar memórias e cartas de imigrantes recém-chegados para suas famílias, que aguardavam novidades e instruções no antigo continente. Essa documentação revela verdadeiras estratégias familiares de imigração, com alguns filhos jovens adultos seguindo na frente para adquirir as primeiras terras e comunicar à família como deveriam proceder com a viagem, o que deveriam trazer ou deixar para trás. Pelo volume de informações que já circulava na década de 1870, foi possível identificar que essas famílias de agricultores corriam uma espécie de risco calculado. A instalação em outro país, as condições precárias de transporte e de comunicação, os perigos da viagem, tudo era alvo de cartas, conselhos e recomendações detalhadas. Grande número de imigrantes transoceânicos já havia praticado uma espécie de migração temporária, em trabalhos provisórios ou sazonais em regiões mais próximas de seus locais de moradia. Camponeses do norte da Itália faziam essas migrações com frequência para trabalhar em colheitas agrícolas, fábricas e minas no sul da França, no Império AustroHúngaro e em outras regiões europeias. Essas experiências de mobilidade foram importante preparo para a aventura transoceânica. A crise agrária intensificava-se após a unificação italiana, e as condições de subsistência do campesinato ficavam cada vez mais difíceis, intensificando a necessidade de suplementação de renda das famílias com as migrações sazonais. A propaganda dos países que queriam receber imigrantes (o Brasil entre eles) apresentava-se como uma alternativa para essas populações. Ao contrário do que a maioria da historiografia da imigração afirma, os imigrantes não davam um salto no escuro com a emigração transoceânica. Colhiam informações com parentes, vizinhos, imprensa, sacerdotes, apesar de desconfiarem frequentemente dessas fontes. A viagem para o Brasil era uma verdadeira façanha de riscos, burocracia e consumo das poucas poupanças, mas era resultado de cuidadosas e refletidas atitudes. Pelas cartas dos pioneiros que chegavam ao novo continente enviadas às suas famílias no norte da Itália, os imigrantes deveriam chegar a Gênova e a outros portos de embarque nos prazos certos, sem muita antecedência, para se evitarem gastos adicionais de hospedagem e de alimentação.

       Tinham que chegar com documentos de origem de suas municipalidades, principalmente declarações de “nada consta”, para que os passaportes pudessem ser expedidos sem maiores dificuldades. As viagens ao Brasil começaram a ser subsidiadas por empresas contratadas pelo governo, mas não eram algo automático. Os viajantes que conseguiam apresentar-se como “condutores” de outros imigrantes obtinham passagens gratuitas para suas famílias. Quando o Reino da Itália impôs dificuldades e embaraços para a emigração, as cartas instruíam os parentes a procurar agências nos portos franceses, informando sobre os cuidados burocráticos e as indicações logísticas e demais conselhos. Só os imigrantes melhor informados conseguiam usufruir com melhores condições os subsídios que o governo do Império do Brasil contratava com comerciantes para a introdução de colonos no Brasil. O governo do Império sabia dessa comunicação dos imigrantes com seus familiares e, apesar de todas as precariedades do serviço de assentamento de colonos, a frequência mensal do correio era religiosamente mantida.

       O volume e as condições das bagagens eram alvo de muito cuidado e de precisas recomendações. Deveriam trazer ao Brasil todas as ferramentas disponíveis, todo o trem de cozinha e ferramentas agrícolas e de marcenaria ou outros ofícios. Mudas de videiras chegariam bem se fossem acondicionadas em latões; tecidos dos mais diferentes tipos, além de máquinas de costura, seriam bem-vindos para a nova vida. Casulos de bicho-da-seda e mudas de amoreiras deveriam ser acondicionados em caixas de madeira com frestas para ventilação. Os conselhos e as indicações eram dirigidos à reconstrução de suas vidas na nova terra como agricultores e como praticantes de indústrias domésticas. Os relatos também informam sobre a presença de caboclos e indígenas, assim como o aprendizado do trato com o solo, que deveria ser muito diferente do praticado na Europa. Houve uma verdadeira transformação cultural nos imigrantes recém-chegados. O conhecimento do novo bioma foi um laço de integração significativo com o campesinato nacional. As necessidades de sobrevivência nas novas terras obrigavam esses indivíduos e grupos familiares a aprender as práticas locais de derrubada das matas, queima das árvores e instalação das primeiras roças entre os troncos ainda calcinados que jaziam no chão. O momento correto do plantio de produtos novos, como mandioca, cana-de-açúcar, banana, feijões, abóboras e demais culturas locais deveriam ser aprendidas, e com certa urgência, já que deveriam providenciar os tratos para uma primeira safra. O aprendizado das espécies animais a serem caçadas e dos peixes disponíveis à captura era parte do cabedal recebido pelos imigrantes graças aos ensinamentos de “um caboclo velho”, um “índio largado”, um “negro forro”, personagens nacionais que estavam presentes desde a condução dos colonos dos portos aos lotes coloniais, que trabalhavam como tropeiros, caixeiros, auxiliares de topógrafos, soldados e funcionários de diretores de colônias. Geralmente os colonos instalavam-se em casinhas provisórias, feitas de pau-a-pique e cobertas por folhas de palmeiras, no clássico estilo caboclo, levando algumas décadas para construir suas sólidas casas de pedra e madeira serrada.

       Logo na chegada os colonos já vislumbravam a compra futura de novos lotes coloniais. A necessidade de garantir a terra aos herdeiros (sempre muito numerosos, tornando inviável a partilha do solo para além de uma determinada escala) os impulsionava à expansão territorial, a uma mobilidade geracional. Apesar de todas as precariedades dos serviços de colonização, esse processo de assentamento de agricultores foi significativamente bem-sucedido, ajudando a consolidar a formação de uma camada de pequenos produtores familiares. A formalização da propriedade fundiária, apesar de ser facilitada pelo Império, com a colocação de preços muito baixos nos lotes, foi um processo lento e não resolvido pelas primeiras gerações de imigrantes. A dívida colonial, proveniente da soma do preço do lote colonial somado aos auxílios previstos de instalação e subsistência dos colonos até a primeira safra, dificilmente era paga. As famílias de agricultores assentados viviam em um regime em que até conseguiam certa fartura em alimentos, mas dificilmente logravam comercializar a preços razoáveis os seus poucos excedentes agrícolas. As dificuldades de transporte, que encareciam os fretes desses artigos, diminuíam a integração aos mercados, até de cidades mais próximas. Por décadas viveram num prolongado regime de pobreza monetária associada a relativo bem-estar na subsistência. Os títulos provisórios emitidos pelo Império dificilmente eram convertidos em escrituras definitivas, pois antes de saldar suas dívidas era comum que os colonos partilhassem ou transmitissem por herança os seus imóveis, isso quando não eram vendidos em “contratos de gaveta” informais para outros colonos.

       De qualquer maneira, o objetivo maior do Império, de assentamento dessas populações, já tinha sido alcançado. A renúncia tácita pela cobrança da dívida colonial é algo pouco lembrado pela historiografia da imigração — sempre preocupada com a busca de realce de certo “heroísmo” e, ao mesmo tempo, de vitimização desses personagens. A historiografia da imigração é muito frequentemente “etnocêntrica”, laudatória e exagerada. Desconsidera os eventos decisivos de trocas culturais e aprendizado nas novas terras oferecidos por camponeses nacionais.

Os camponeses do Contestado

       Em minha pesquisa de doutorado, parti para a busca de personagens de mais difícil localização, não por sua pequena participação no contingente demográfico, mas por se tratar de uma população que viveu, e em muitos casos ainda vive, com maior distanciamento dos escrutínios dos órgãos do Estado. As fontes e os registros oficiais são modestos sobre os sertanejos, os elementos nacionais pobres, indígenas, quilombolas, caboclos, que sobrevivem em todo o interior do país. O planalto meridional brasileiro, formação geográfica que compreende o território entre o norte do Rio Grande do Sul e o interior de São Paulo, sofreu diferentes ondas de despovoamento e repovoamento nos últimos quatrocentos anos. As atividades de captura das expedições de bandeirantes paulistas foram responsáveis pela escravização de mais de trezentos mil indígenas no século XVII. Os povos das reduções jesuíticas de Guairá (atual Paraná) e do Tape (atual Rio Grande do Sul) foram liquidados. No século XVIII, a aniquilação aconteceu com o ataque conjunto de portugueses e espanhóis aos Sete Povos das Missões.

       O despovoamento nunca se completou. A população indígena remanescente voltou a crescer e a dominar os territórios que antes tinham sido palmilhados pelos paulistas. Núcleos guaranis eram presentes ao longo dos grandes rios, Uruguai e Iguaçu. Os botocudos (atuais xoclengues) tinham domínio nas matas e subidas de serras. Os coroados (atuais kaingangues) mantinham forte presença nos campos de cima da serra. Entre as últimas décadas do século XVIII e as duas primeiras do XIX, o principal núcleo coroado da capitania de São Paulo, kong-bang erê, derrotou dez expedições de paulistas. O local foi agregado aos portugueses apenas em 1810, quando uma facção de coroados foi atraída pelos colonizadores para formar o aldeamento de Guarapuava (nome dado pelos paulistas). Nas décadas seguintes, núcleos de coroados foram atraídos e aldeados, num regime ainda muito instável, nas regiões de Palmas, Chapecó, Guarita e Passo Fundo, formando uma constelação de aldeamentos militarizados pelos colonizadores. Os estudos mais recentes de história indígena demonstram um grande grau de convivência de aldeamentos, toldos e demais comunidades indígenas com colonizadores, fazendeiros e tropeiros.

       O território do planalto meridional teve sua colonização mais estabilizada a partir das diferentes rotas dos caminhos das tropas, formado pela atividade dos tropeiros paulistas e riograndenses, que conduziam cavalos e muares da Bacia Platina para a feira anual de Sorocaba. Era uma movimentação que dependia do início da primavera nos campos de cima da serra, onde as pastagens rebrotavam e davam sustentação ao gado que era conduzido para São Paulo, entre setembro e março. As rotas mais antigas desse caminho já tinham dado oportunidade para a formação de uma longa rede de fazendas, vilas, pequenos povoados e pousos de tropeiros, como Cruz Alta, Vacaria, Lages, Curitibanos, Rio Negro, Lapa, Palmeira e Itapetininga. A partir de 1840, uma nova rota, mais a oeste, chamada de “Caminho das Missões”, bem mais próxima da fronteira com os vizinhos platinos, partia da região dos Sete Povos das Missões, atravessava o rio Uruguai no passo do Goio-Ên, seguia para Palmas e Guarapuava, para depois rumar ao antigo traçado na região dos Campos Gerais do Paraná. A vantagem do novo Caminho das Missões era o encurtamento de prazo de viagem que de três passou à média de dois meses. Essas atividades mercantis intensificaram a integração com a Bacia Platina, tanto pelo comércio legal quanto pelo contrabando, potencializando a mobilidade territorial de muitos contingentes populacionais. Apesar da escassez de fontes diretas, os sertanejos nacionais aparecem em processos judiciais, em relatórios de viajantes, em correspondência e documentos militares.

       Nos processos de regularização fundiária promovidos por fazendeiros, eles normalmente aparecem como agregados, peões e “intrusos”, quando não são bem-vindos. Ao longo dos caminhos das tropas, além das fazendas de criação (normalmente formadas por grandes propriedades nos campos nativos, locais mais valorizados do planalto), os agricultores pobres, de origem indígena, africana e mestiça, arroteavam terrenos e construíam suas roças dentro de matas e faxinais, locais desprezados pela pecuária. No entanto, essa ação de posseiro “criava campos”, espaços que eram agregados às grandes fazendas. São recorrentes, nessa região, vários processos de regularização de posses de criadores que apresentam os agricultores às margens de suas propriedades como seus agregados, e não como posseiros independentes. Na vida cotidiana esses conflitos ocorriam quando o gado dos criadores invadia as roças dos pobres, principalmente no inverno, quando as pastagens naturais eram queimadas pela geada. Era uma expansão quase por inércia, já que não existiam cercas, e somente os agricultores mais previdentes e com melhores recursos é que tinham condições de construir muros de taipa para defender suas roças do assédio do gado solto. Mesmo assim, o processo de concentração fundiária não era generalizado. A situação de fronteira agropastoril conviveu com a persistência de núcleos de pequenos lavradores em comunidades interioranas, garantindo a existência histórica de um campesinato nacional, mesmo nas regiões conhecidas tipicamente como de pecuária, tal o caso dos municípios de Lages, Campos Novos e Curitibanos. Alguns estudos recentes comprovam que pobres, analfabetos e libertos conseguiam inclusive regularizar oficialmente suas posses. Entre esses lavradores do planalto foi possível identificar formas sazonais de mobilidade geográfica. O trabalho esporádico como tropeiros na primavera e no verão era pontuado por longos deslocamentos para outras províncias ou para o litoral serra abaixo. Isso significava uma ampliação significativa das experiências e contatos culturais, sociais e políticos desses trabalhadores. O campesinato do planalto tinha familiaridade com temas platinos, da mesma maneira que acompanhava conflitos e transformações em outras partes do Brasil. No inverno era época de seguir para os ervais nativos e providenciar um rendimento suplementar para suas famílias por meio da colheita e do beneficiamento das folhas de ílex. Suas pequenas criações de porcos podiam ser mantidas a distância, sem a necessidade da vigilância constante de seus pequenos criadores, com os suínos mantidos em encerras dentro da mata de araucária, sendo os animais engordados com a queda de grossas pinhas. Duas experiências culturais foram muito marcantes para essas populações: o recrutamento militar forçado e a convivência e miscigenação com imigrantes. Tais experiências não ocorreram em apenas alguns momentos específicos. Foram resultado de processos de longo curso no tempo e em praticamente todo o território do planalto.

       O século XIX foi extremamente conflituoso no planalto meridional. O envolvimento dessa região direta ou indiretamente com os conflitos no Prata, além de grandes convulsões internas, fez com que o recrutamento militar forçado fosse rotineiro em todas as décadas desse século. Não houve família que não tivesse que lamentar a perda de um pai, filho ou irmão para o serviço no Exército, na Marinha ou em forças auxiliares como os Regimentos de Ordenanças e depois a Guarda Nacional. O recrutamento para o Exército e a Marinha implicava num período de serviço militar por, no mínimo, quinze anos de duração, sujeito a trabalhos forçados, deslocamentos para províncias distantes e uma disciplina baseada em castigos corporais, como um segundo cativeiro. O planalto forneceu soldados nas campanhas contra os espanhóis no Prata ao longo do século XVIII, para as campanhas de ocupação da Cisplatina (1811 e 1816) e na Guerra Cisplatina (1825-28); foi convulsionado em vários momentos durante o movimento farroupilha (1835-45); participou com homens para a Campanha do Prata e deposição dos governos de Manuel Oribe e Rosas (1851-52); e participou intensamente no envio de Voluntários da Pátria para a Guerra da Tríplice Aliança (1865-70). Ao final do século a experiência devastadora processou-se com a Guerra Federalista (1893- 95), bem mais violenta que as campanhas anteriores, devido à intensificação dos combates, deslocamentos e o recrutamento forçado, praticados pelos dois lados da contenda.

       Zélia Lemos, historiadora de Curitibanos, informa que a Revolução Federalista ensinou dois vícios perniciosos aos sertanejos do planalto: a degola e o arrebanhamento do gado alheio. Embora a historiadora queira com isso desqualificar os camponeses, apresentando-os como bárbaros jagunços, sua informação não é incorreta e precisa ser avaliada no âmbito do conjunto das experiências dessas populações. Os peões, lavradores, ervateiros e tropeiros recrutados por chimangos ou maragatos durante a Guerra Federalista aperfeiçoaram suas experiências militares, aprenderam a atacar e recuar, a se esconder de inimigos, a sabotar pontes e linhas de telégrafo, a enviar chasques estafetas para chamar aliados e “bombeiros” para espionar o inimigo. Era necessário aprender a sobreviver às condições adversas de cerco de cidades e rápidos deslocamentos de cavalaria. O conhecimento e manejo de carabinas, a execução de prisioneiros, os fuzilamentos, as degolas e castrações foram práticas que já existiam no passado, mas se intensificaram brutalmente na Guerra Federalista. Os que imaginam que a sociedade brasileira nunca viveu explosões de ódio não leram cronistas e relatos dessa guerra. Ninguém passa impune por esses eventos. As famílias de lavradores aprenderam a esconder o que poderia ser “requisitado” pelas tropas oficiais ou rebeldes de passagem: o gado, as mulheres e os jovens recrutáveis. Muitas vezes se escondiam no mato ou em ranchinhos distantes de sua casa, deixando um velho para oferecer umas galinhas, um porco ou algum alimento aos passantes. Outras vezes, procuravam mudar de cidade e região, rumar para uma localidade onde um parente ou compadre poderia hospedá-los e empregá-los enquanto durasse a refrega. Mas quando havia o recrutamento, a experiência desses indivíduos marcava suas vidas. Nunca mais seriam modestos lavradores. Esse fenômeno da experiência militar do campesinato foi estudado em muitas partes do mundo. Na origem de muitos levantes camponeses está a participação passada em Exércitos. Tudo isso precisa ser considerado para compreender que os sertanejos envolvidos no movimento do Contestado não eram “páginas em branco”. Traziam experiências, conhecimentos e hábitos de combate. As relações entre as populações de origem europeia e cabocla, com muita frequência, são conflitivas.

       À primeira vista, quem visita muitos municípios do planalto meridional nota o contraste entre os descendentes de alemães, italianos e poloneses, sempre melhor estabelecidos economicamente, dominando a visibilidade pública desses municípios, ocupando a maioria dos cargos públicos de poder local e de prestígio social. São donos de lojas, fábricas, fazendas e estabelecimentos de serviços. No entanto, esse verdadeiro apartheid social que se criou em muitas partes é recente e, por muitos depoimentos e fontes, pode ser atribuído às últimas levas de descendentes de imigrantes (de segunda e terceira gerações), que vieram das antigas colônias do Rio Grande do Sul e, nas décadas de 1930 a 1950, chegaram em grande número às regiões oeste de Santa Catarina e do Paraná. Nesses territórios já viviam outros descendentes de imigrantes, que vieram de levas mais antigas, ao longo do século XIX, desde a antiga colônia alemã de Rio Negro (1829) até as várias colônias de poloneses, ucranianos e russos das décadas de 1880 e 1890. Essas levas iniciais de imigrantes passaram por um processo de integração, e até miscigenação, muito mais intensa com a população nacional. Os agentes consulares europeus e as autoridades governamentais brasileiras viam esse fenômeno como algo negativo, como se os imigrantes estivessem se “acaboclando”, no sentido mais pejorativo, significando uma espécie de rebaixamento social ou regresso civilizatório. No entanto, essas populações estavam integrando-se ao país e à sua população, ajudando a criar uma nova nacionalidade, aprendendo a tomar chimarrão com os caboclos, a participar de seu mesmo universo político (e ao mesmo destino dramático das guerras), adotando as práticas religiosas locais, fundidas às suas tradições, praticando benzeduras, rezando e acompanhando as prédicas dos monges e profetas do planalto.

O campesinato que nos recebe

       Buscando depoimentos e entrevistas com sobreviventes das “cidades santas” do Contestado (muitos que eram crianças e jovens durante o conflito ainda eram vivos no final da década de 1990), tive o prazer e a satisfação de ser recebido em casa por duas dezenas de depoentes. Eram senhores e senhoras que ainda moravam no meio rural ou viviam na periferia de pequenas cidades do planalto. Nunca fui recebido com hostilidade ou desconfiança por essas pessoas. Sempre, insisto, sempre me ofereceram um café, um chimarrão, um chá ou um martelinho de cachaça como demonstração de afeto, hospitalidade e gentileza. Eu era apenas um estranho que estavam conhecendo naquele momento. Eu não trazia qualquer benefício, bolsa, vantagem ou serviço. Ia para entrevistá-los sobre assuntos delicados, frequentemente violentos e dolorosos, que envolviam as trajetórias de suas famílias. Era gente de coragem que depunha sobre situações dramáticas, sobre maus-tratos, fuzilamentos, degolas, fome e epidemias. Muitos anos depois da pesquisa do doutorado, escutei novamente os áudios de cada uma das entrevistas que realizei. Emocionei-me com a sensibilidade e sinceridade dos relatos, reparei nas diferentes experiências de homens e mulheres com a guerra, ou pelo menos das diferentes percepções das experiências. Tentei me colocar no lugar deles, de viver numa região onde o vizinho em frente é descendente de alguém que matou metade de sua família.  Pensei no longo período de sofrimento e do estigma que carregaram de filhos e parentes de “jagunços” e “fanáticos”. Entendi o silêncio de muitos anos, pelo menos por parte dos remanescentes das “cidades santas”. Fiquei feliz por aprender com eles e em saber que nosso povo, mesmo os mais pobres e expropriados, são gente de muito valor, que continua encarando a vida com carinho e diversão. Conhecendo suas falas e parte de suas vidas, aprendi a entender como os camponeses resistem. Não é apenas em rebeliões, levantes e revoluções. Na maior parte das vezes, resistem apenas sobrevivendo, fugindo para novas terras, plantando novas roças, criando pequenos animais, participando de mutirões, ajudando um vizinho, aprendendo um novo ofício, abrigando um parente e vendo o mundo de uma forma muito peculiar. A gentileza como me receberam fez recordar a experiência de Viamão: gente do mato tem muita “urbanidade” também!

Paulo Pinheiro Machado, Departamento de História, UFSC

Original em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/maracanan/article/view/47135/32011