ANPUH- 2021 – Mesa Diálogos Contemporâneos – Movimentos sociais rurais na historiografia e nas ciências humanas, por Paulo Pinheiro Machado.
O Brasil é um continente. Não há como tratar um tema desta envergadura sem reconhecer as dificuldades em se apurar as distintas formas de construção do território e de relações sociais peculiares que se desenvolveram em suas diferentes regiões. Nesta fala, gostaria de me concentrar em alguns aspectos importantes no estudo de movimentos sociais rurais: suas fontes, suas abordagens metodológicas, suas relações com os contextos políticos e sociais.
Em primeiro lugar, como todos sabemos, existe uma longa série de estudos históricos, além de relatos de viajantes, jornalistas, médicos, sacerdotes e militares que analisaram os movimentos sociais rurais dos períodos da Colônia, Império e início da República, em sua grande maioria com olhares urbanos e eurocentrados. Tinham como postura intelectual constante a reprodução do discurso colonizador oficial, a visão de um país incivilizado, incompleto e de uma população desqualificada por suas origens étnicas e raciais. As manifestações populares, tanto urbanas como rurais, eram vistas, nas versões mais generosas, como espasmos de indivíduos tangidos pela fome e pelas mais diferentes carências e, nas abordagens mais preconceituosas, como manifestação de aberrações irracionais, fanatismo religioso ou formas de banditismo e pura criminalidade. Para o professor Pedro Lima Vasconcellos, analisando a obra de Euclides e associando com a visão de Frei Vicente do Salvador, ainda no século XVII, existia a visão predominante de que o Diabo está no Sertão! ( http://books.scielo.org/id/pdkdq/pdf/ferraz-9788578791186-11.pdf).
Trata-se de um conjunto de visões com preconceito de classe associado ao preconceito racial e à desqualificação de populações rurais. Estas imprecações eram pesadamente atribuídas aos movimentos sociorreligiosos mais conhecidos do início do período republicano, como a concentração de Juazeiro, o povoado de Belo Monte, mais conhecido como Canudos e a Guerra Sertaneja do Contestado. Mas para períodos anteriores da história brasileira, estas desqualificações estavam presentes em muitas crônicas e relatos dos movimentos do Reino da Pedra, da Cabanada pernambucana e alagoana no início da Regência, a Cabanagem do Grão-Pará, a Balaiana do Maranhão e no Piauí e muitos outros. Sobre os rebeldes das matas limítrofes entre Pernambuco e Alagoas, no estudo realizado por Marcus de Carvalho, a imprensa liberal de Recife se referia como sendo de um conjunto de “escravos, indígenas e ladrões” . Além das origens raciais, os rebeldes cabanos eram chamados de ladrões por praticarem o costume de fazer investidas a fazendas e engenhos de cana, para a libertação de cativos, no caso, uma violação à sagrada propriedade.
Como visto, as fontes majoritariamente disponíveis sobre estes movimentos demandam formas de leitura a contrapelo. A imprensa, os relatórios policiais e militares, a correspondências de Chefes políticos locais com Governadores e oficiais do Exército, dos Regimentos de Ordenanças e da Guarda Nacional e, algumas vezes, quando integrantes das classes populares são levados à julgamento, os processos judiciais, são fontes produzidas por setores sociais majoritariamente hostis às populações rurais. Mas o desafio da compreensão destas fontes tem resultado em teses e dissertações muito relevantes para a recuperação do protagonismo rural popular.
Na longa história brasileira, fugir das autoridades, ficar distante das capitais, portos, Vilas e Quartéis era uma maneira mais segura para se viver. Não sendo escravo, o brasileiro livre ou liberto estava sujeito a outras formas de constrangimento de sua vida – principalmente o recrutamento militar e a tributação. A tese do professor James Scott sobre populações que fogem do Estado é bem-sucedida para explicar muitos fenômenos demográficos no nosso país, os indígenas buscam o sertão mais remoto, tal como fizeram os quilombolas e muitos homens e mulheres livres pobres. Em grande medida, ondas de interiorização da população nacional foram estimuladas não apenas pela atração dos biomas, busca de novos solos, pastos e novas oportunidades de trabalho, mas também para ficar mais distantes de autoridades como Capitães-Mores, Juízes de Paz, Oficiais da Guarda Nacional e outros. Desde o período colonial é claro o tratamento de pobres insurgentes. Na pesquisa de Luciano Figueiredo sobre as Quimeras de Minas, a repressão aos pobres insurgentes deveria ser tão drástica como à dedicada aos escravos fugitivos, dizia um soldado português: “esta guerra só se deve fazer como quem vai investir num quilombo de negros”.
Chama a atenção a manutenção do padrão de ocupação territorial colonial, mesmo depois da independência política formal. O brasileiro pobre é um indivíduo suspeito, por natureza. Mesmo antes das leis que o desqualificavam moralmente como “vadio”, já era objeto de captura. O problema para as autoridades não é o conjunto da população rural. Boa parte desta população, livre ou cativa, estava sob o controle de proprietários fundiários, sujeitos à sua disciplina e mando local. Mas há grande número de pequenos fazendeiros, lavradores, posseiros, pescadores, trabalhadores por empreitada, tropeiros, pessoas do meio rural que trabalhavam para si, que foram o alvo de capturas para preenchimento de cotas do recrutamento militar. Ser recrutado era quase uma experiência de reescravização, tais as exigências que tinham que ser cumpridas, como o trabalho compulsório em obras públicas, os castigos corporais e as transferências de região.
A época das Regências foi pródiga nestas violências. A desmobilização do exército ao final do I Reinado e início das Regências representou uma importante oportunidade de ação de militares identificados com um certo anti-lusitanismo popular, que teve diferentes formas ao longo do séc. XIX. Quando se acirravam disputas políticas locais, o recrutamento militar da clientela dos adversários políticos era uma forma de se penalizar os opositores do governo. Em grande medida, um número significativo de conflitos ocorreu com a reorganização dos poderes locais nas décadas seguintes à independência. O final dos Regimentos de Ordenanças, a organização dos Juizados de Paz e da Guarda Nacional criaram forte abalo e novas disputas nas estruturas de poder local, fazendo com que facções oligárquicas adversárias apelassem à participação da plebe rural nestes conflitos. Os diferentes movimentos ocorridos na Regência demonstram que em vários momentos esta plebe rural não agia apenas através dos liames clientelísticos. Em vários momentos impôs suas demandas, lutando de maneira descolada de seus tradicionais chefes políticos.
A itinerância do trabalho extrativo e a busca por novas terras longe dos grandes fazendeiros fazia com que a choupana típica dos brasileiros livres fosse muito precária e bastante semelhante às malocas indígenas, assim eram descritos os nacionais pobres chamados de vadios. A mobilidade da população nacional era vista como mais um fator de vadiagem por parte de governantes. Em estudo dos anos anteriores a Balaiada, no Maranhão, Mathias Rohring Assunção aponta a preocupação do Comandante Geral da Província, Alves de Carvalho, sobre a existência de grande número de “vagabundos e ladrões”, na parte leste da Província:
Dizia o Comandante, em 1826:
“pois que com esta qualidade de gente não deve haver contemplação alguma. Castigo temporal, tenho experimentado que de nada serve, são soltos e tornam a mesma vida com dobrada audácia fazendo-se por isso inútil as diligências em que trabalho para limpar o meu Distrito deste flagelo da raça humana. Sua Majestade Imperial precisa de braços para a Marinha e obras públicas, estes indivíduos podem ser empregados nestes trabalhos, porque de todas as formas, é benefício comum.”
Na repressão à Cabanagem no Grão-Pará, uma das guerras internas mais violentas já realizada no Brasil, em estudo realizado por Magda Ricci, o Presidente da Província encaminhava os prisioneiros que ainda não tinham sido executados para uma corveta em Belém, que deveria mandar os capturados para trabalhar em outras Províncias. Dizia o Presidente , General Soares de Andrea em 1838:
“muitos poucos destes serão inocentes; mas a falta de clareza com que foram recolhidos, faz que não saiba deles senão o crime geral de serem do partido dos rebeldes…Como quer que seja, são homens perigosos nesta Província, e que podem ser úteis em outra, ou trabalhando pelos seus ofícios, ou como grumetes, com tanto que aqui não voltem…”
O relato de Andrea mostra como homens presos indistintamente eram arrancados de suas localidades e recrutados para a Marinha como penalização por sua identificação com o “partido rebelde”. Mesmo assim reconhece que alguns inocentes eram arrastados para este exílio já que havia “falta de clareza” nas suas capturas no interior do vale amazônico.
O castigo recomendado era o recrutamento militar, para a Marinha, Exército e para os mais remediados, a soldadesca da Guarda Nacional. Quando o Comandante se refere as carências da Marinha ele não esconde que necessita de “braços”, igualmente para obras públicas. A citação também revela uma atitude recorrente de forças policiais e autoridades locais em prender e castigar fisicamente os ditos vadios, mesmo que os castigos corporais já fossem proibidos pela Constituição de 1824.
Do ponto de vista legal esta plebe insurgente foi objeto das mais distintas formas de enquadramento e criminalização. A professora Mônica Duarte Dantas aponta para o período colonial o enquadramento como “crime de lesa Majestade” no Livro V das Ordenações Filipinas. A partir do Código Criminal de 1830, os indivíduos poderiam ser condenados por “crimes contra a segurança interna do Império e pública tranquilidade”, sendo definidos mais especificamente os crimes de “conspiração, rebelião, sedição, insurreição, resistência, tirada ou fugida de presos e arrombamento de cadeias e desobediência às autoridades”. Se a prisão celular era a principal pena aos livres, aos escravos as penalidades eram agravadas para morte, galés perpétuas e para penas mais leves, galés por 15 anos e açoites.
Os camponeses compulsoriamente recrutados também foram participantes de muitos movimentos. As experiências militares nas guerras de Independência, nas guerras da Regência, na Guerra do Paraguai e na Revolução Federalista (1893-95) formaram diferentes gerações de sertanejos que passaram por experiências de combate que foram incorporadas aos seus posteriores costumes e práticas rebeldes. O bandoleirismo e o banditismo são fenômenos que se desdobram destes processos, mas frequentemente estão associados aos conflitos dentro das esferas de poder local e também presente nos movimentos sociais. Sem dúvidas, o bandoleirismo rural merece estudos mais focados em suas atuações políticas e militares, sem que se deva necessariamente enquadrar no figurino de banditismo social. Nem sempre a atuação dos bandidos significa a latência de uma revolta camponesa.
Por algum tempo a historiografia se concentrou no estudo biográfico de chefias sertanejas para explicar os movimentos sociais rurais. Isto é um problema sério, pois é fundamental entender as decisões e iniciativas das lideranças sertanejas não como relampejos individuais, iluminados e de vanguarda, mas como intérpretes e correspondentes das expectativas e demandas dos sertanejos. Por mais importantes e carismáticas que tenham sido as lideranças rurais, o crescimento dos movimentos sociais se deu por adesão consciente e demandas colocadas por seus seguidores, que mais que seguidores se converteram em combatentes. A biografia de Antônio Maciel não explica Canudos, assim como Padre Cícero não explica Juazeiro e, principalmente os movimentos seguintes de Caldeirão e Pau de Colher.
Os movimentos sertanejos não apresentaram apenas líderes carismáticos. Também inventaram instituições locais, como cortes celestes, grupos de beatos e Capelães de Terço, reinventaram apóstolos e Guarda Católica, construíram unidades de “Pares de França” ou “Pares de São Sebastião”, desenvolveram grande número de meios organizativos em suas experiências comunitárias. As comunidades, cidades santas, povoações e irmandades sertanejas demandam mais estudos, tanto de memórias, testemunhos, cruzamento de relatos, como da própria cultura material, como o professor Francisco Régis Lopes Ramos vem fazendo em relação aos objetos do Caldeirão.
No estudo das fontes sobre os conflitos do século XIX e primeiras décadas do século XX outro problema aparece para reflexão. A linguagem dos sertanejos apontados como rebeldes, mesmo em meio aos discursos de desqualificação das fontes militares e judiciárias, frequentemente reproduz o discurso de deferência à “Monarquia e a Santa Religião”. Muitos se apresentam em nome da pessoa do Imperador, seja na figura de Pedro I que estava fora do país entre 1831 e 34, ou em nome do menino Pedro II, antes da Maioridade. A pesquisa histórica mais recente confirmou estas teses entre os Balaios, Cabanos, Conselheiristas e caboclos do Contestado.
Neste aspecto há que considerar algumas ordens de questões. Os sertanejos, na maior parte dos movimentos citados, não se apresentaram como rebeldes, foram assim tratados pelo Estado. Em muitas circunstâncias as populações rurais lutaram apenas para a manutenção de suas condições de vida, de seus direitos tradicionais. As noções de deferência ao poder monárquico, herdadas do Antigo Regime certamente ainda tinham um forte enraizamento popular, principalmente por se tratar de um poder destacado e diferenciado do poder local e provincial dos grandes proprietários e seus sistemas oligárquicos. Esta fissura, que se apresenta em muitas regiões do Brasil durante o Império, ficou mais evidente com a República e todo o processo de violência e exclusão popular que este regime inaugurou. Outra vertente, que não pode ser desconsiderada, é a formação de uma noção popular de Monarquia, uma adaptação da leitura dos textos religiosos católicos, que pugnavam a luta por um “Governo do Céu”, como projetos de ruptura com o mundo circundante dos fazendeiros, dos militares e das oligarquias.
Entender a linguagem dos movimentos sóciorreligiosos é um desafio ainda atual. Embora seja correto em linhas gerais, não é suficiente caracterizá-los apenas como movimentos camponeses que lutaram por terra, ou movimentos anti-oligárquicos que enfrentaram o Coronelismo e outras formas de poder local. A componente de religiosidade popular que cimentou as experiências de Canudos, Juazeiro, Contestado, Caldeirão, Pau de Colher não foi um conjunto residual de manifestações sertanejas. Então, para enfrentar a questão religiosa dos sertanejos não basta denunciarmos as visões preconceituosas que os enquadravam como “fanáticos”. Com a ajuda da medicina lombrosiana e o evolucionismo spenceriano se construiu um ambiente intelectual que considerou o denominado “fanatismo” como manifestação do atraso, da incultura e irracionalidade da população sertaneja. Esta imprecação do “fanatismo”, mais do que um conceito elaborado, não passava de uma descrição externa de intelectuais urbanos que não conseguiam entender que o mundo sertanejo vivia um universo cultural e costumeiro próprio. Uma verdadeira barreira cultural precisava ser transposta para que o mundo sertanejo pudesse ser entendido em suas motivações e projetos.
Durante os anos 1950 e 1960 na nascente sociologia brasileira, houve a crítica e o abandono da noção de fanatismo e passou a se utilizar o conceito de messianismo para o entendimento de vários movimentos sociorreligiosos. O conceito de origem teológica teve muitos problemas na sua aplicação no Brasil. Pronto de identificou que poucos movimentos se encaixavam neste tipo de conceituação, pensada ainda como parte da herança judaico cristã. Além disso, a noção de messianismo estava embasada num conceito de manifestação de anomia social manifestada por comunidades impactadas por fortes processos de modernização. Em que pese as importantes contribuições de Roger Bastide, Maurício Vinhas de Queiroz e Maria Isaura Pereira de Queiroz para o estudo do Contestado e outros movimentos, estes autores não deixavam de considerar estes movimentos messiânicos como uma manifestação de “autismo”, uma espécie de “patologia social”.
A partir da década de 1970, com os estudos de Duglas Teixeira Monteiro, que passa a entender os sertanejos que participaram do movimento do Contestado como “pessoas normais”, é deslocado o conceito de messianismo e adotada a visão weberiana de Reencantamento do Mundo para explicar o fenômeno “milenar” estudado. Duglas fez especial esforço para compreender os gestos de ruptura dos sertanejos com o mundo circundante, com o desenvolvimento de novas formas de compadrio, diferentes costumes sociais sendo inventados e construídos nas “cidades Santas” do Contestado.
Especial atenção foi dispensada por Duglas e pesquisadores mais recentes sobre a religiosidade sertaneja. O estudo de preces e práticas religiosas tem ganhado novos significados tendo em vista suas diferentes origens. A prática de portar patuás com rezas fortes para fechar o corpo de guerreiros, incorporava uma síntese peculiar de práticas religiosas não-europeias.
Talvez, o desafio de entender os movimentos sociorreligiosos brasileiros é compreender sua mestiçagem, é buscar o entendimento de sistemas de identificação e leitura do mundo, de construção de uma religiosidade popular que imprimiu a construção de projetos comunitários específicos, a partir da incorporação de tradições religiosas africanas, indígenas e europeias.
Pensar o mundo rural ontem e hoje continua a ser pensar na cidadania e condições de vida de nossas sofridas populações do interior. Bom dia!