Paulo Pinheiro Machado
  • VII Simpósio Nacional do Contestado: Memória, Educação e conflitos sociorreligiosos no Brasil

    Publicado em 05/09/2022 às 17:35

    De 7 a 11 de novembro de 2022, no Campus Canoinhas da Universidade do Contestado, funcionará de forma híbrida (meio presencial, meio remoto). Inscrições até 15 de outubro. Mais informações no link abaixo.

    https://inscricoes.unc.br/inscricoes/?ID=2625


  • O Bicentenário da Independência: História e projetos de Brasil – Paulo Pinheiro Machado

    Publicado em 19/08/2022 às 22:31

    A independência política do Brasil pode ser tratada em duas dimensões, uma histórica, de recuperação e reflexão sobre o processo ocorrido há 200 anos, outra de memória, de disputas político-ideológicas e ressignificações deste processo em diferentes épocas de nossa história, inclusive na atualidade.

    Não vou discutir aqui os arroubos golpistas evidentes do atual governo e o uso instrumental imediato do 7 de setembro para este ano. O objetivo deste texto é refletir e questionar sobre noções do senso comum a respeito da independência. Este ensaio obviamente não esgota o assunto, mas procura levantar reflexões sobre nossa história e sobre as peculiaridades de construção do regime autocrático que atualmente vivemos, e do padrão de dominação de classe que foi construído ao longo da primeira metade do século XIX.

    A onda política de extrema-direita tem embalado um verdadeiro recrudescimento aos “valores raízes” da nacionalidade, incensando personagens do grupo governante da época, a começar pelo português Pedro I, seguindo indivíduos que tiveram uma trajetória ligada ao “Partido” Caramuru (pró-absolutista e pró-Lusitano), como José Bonifácio e outros. O enredo é bem antigo e já conhecido. O Príncipe Português, casado com a Princesa Leopoldina da Áustria, da família Habsburgo – uma verdadeira concretização da Santa Aliança nos trópicos – criaram este Estado chamado Império do Brasil, como parte de um gesto de bondade e deferência.

    É importante lembrar um contexto mais amplo. O processo de independência em nosso continente se inicia com a luta das 13 colônias inglesas na América do Norte, em 1776. Uma longa guerra resultou na primeira experiência política de ruptura com o domínio europeu. Logo mais, a partir de 1791, acontece o mais formidável movimento, a revolução de São Domingos (atual Haiti) que resultou na erradicação da escravidão e na posterior independência política da mais rica colônia francesa de então. Os escravizados do Haiti tinham uma longa trajetória de revoltas, muito anteriores à Revolução Americana e a Revolução Francesa, seu movimento criou um abalo social e político de grandes proporções em todo o mundo atlântico. A repercussão da Revolução Haitiana será profunda nas décadas seguintes, sendo um exemplo para as classes populares e um temor às classes proprietárias.

    Batalha de São Domingos Revolução Haitiana pintada por January Sulchodolski

    A partir de 1807, com a ocupação da península ibérica pelas tropas napoleônicas, a oportunidade de independência foi colocada às Américas espanhola e portuguesa. No entanto, as metrópoles ibéricas tiveram diferentes destinos. Enquanto a cúpula da monarquia espanhola foi capturada e presa por Napoleão, criando uma situação de acefalia em seu império colonial, a monarquia portuguesa fugiu e se instalou em sua colônia americana, ato inédito, jamais praticado por qualquer monarquia europeia.

    Os laços de continuidade

    Considerando as Américas espanhola e inglesa, onde as independências representaram lutas das colônias contra as suas respectivas metrópoles, no Brasil aconteceu um processo muito peculiar: a independência política foi construída e dirigida por uma elite metropolitana, portuguesa, instalada no Rio de Janeiro a partir de 1808. Esta Corte lusitana nos trópicos não se resumia apenas à família real e seus empregados. Se compunha por um contingente aproximado de 10 mil pessoas, incluindo estruturas inteiras dos Ministérios, do poder Judiciário e da administração fazendária. Foi uma verdadeira transferência de parcela significativa do aparelho de Estado português.

    Há um longo processo político, pelo menos até 1850, de consolidação do poder do governo do Rio sobre as demais Províncias. Desta forma, sempre que mencionam o processo de independência, os historiadores não se restringem aos acontecimentos de 1822, mas analisam um processo mais largo, desde a chegada da Corte Portuguesa ao Rio de Janeiro, em 1808, até a consolidação do novo Estado, e sua aceitação pelo conjunto de Províncias, na década de 1850.

    A presença da Corte criou raízes no Brasil. Isto fica demonstrado no grande número de portugueses natos que permaneceram no topo da burocracia do novo Estado criado a partir de 1822. Como já foi demonstrado por José Murilo de Carvalho, os nascidos em Portugal compunham a maioria da magistratura, do comando do clero, da oficialidade do exército e fizeram grande número de deputados, senadores e conselheiros de Estado até a década de 1850.

    A independência política conduzida a partir da presença da Corte portuguesa no Rio de Janeiro, exemplarmente estudada pela professora Maria Odila Dias, resultou numa luta de portugueses instalados no centro-sul do Brasil, contra os portugueses que restauravam seu poder político metropolitano através da reunião das Cortes (o parlamento) de Lisboa, desde 1821, como resultado da Revolução do Porto, ocorrida no ano anterior. Os rebeldes do Porto organizaram um levante contra a ocupação militar inglesa que vinha desde 1810, depois da expulsão das tropas napoleônicas de Portugal. Com este movimento, o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves contará, na prática, com dois comandos. O governo do Rei João VI, sediado no Rio de Janeiro com seu ministério e demais órgãos administrativos e o Governo de Lisboa, que será conduzido pelas Cortes (o parlamento) reunido em Lisboa, com ampla maioria de representação da metrópole. A Revolução do Porto foi inicialmente bem recebida em todo o Brasil, com proclamações de adesão de norte a sul, tendo nas capitais das Províncias se formado Juntas Governativas, em sua maioria fiéis às Cortes de Lisboa, pela promessa de uma Constituição que colocaria fim ao absolutismo monárquico.

    A Revolução portuguesa tinha claros limites. As Cortes de Lisboa não tinham como objetivo depor o Rei, mas sim impor um regime constitucional e recuperar a primazia do Reino sobre o Brasil, tendo os deputados portugueses emitido Cartas Régias sem a assinatura do Rei, pois o poder constituinte havia avocado esta capacidade. Assim, ao longo dos anos de 1821 e 1822 há várias ordens das Cortes de Lisboa impondo medidas sobre o conjunto do Estado português, mas principalmente tratando de realocar, no Reino, os órgãos de Estado que tinham sido transferidos para a América Portuguesa.

    Entre as ordens expedidas pelas Cortes de Lisboa está a obrigação do retorno do Rei João VI e, mais tarde, para esvaziar o governo do Reino do Brasil no segundo semestre de 1821, com a ordem do retorno do Príncipe Regente e herdeiro do Trono, Pedro de Alcantara. O movimento do “Fico” foi promovido, em sua maioria, por portugueses radicados no Rio de Janeiro que temiam que as medidas tomadas pelas Cortes de Lisboa prejudicassem suas posições políticas e econômicas já assumidas no novo mundo.

    Estes são aspectos importantes para se avaliar o grande grau de continuidade e a escassa ruptura representada neste processo de independência. A dinastia reinante permaneceu a mesma, os quadros administrativos lusitanos foram declarados “cidadãos do Império”, por inércia, desde que não se manifestassem publicamente em contrário. Mais que isto, o poder do governo imperial sediado no Rio, com forte apoio de elites proprietárias de Minas Gerais e São Paulo, apresentou-se como um representante dos setores proprietários que se preocupavam com o “tumulto” e a “anarquia” que poderiam ocorrer com a implementação de outros projetos de independência. Neste sentido, a manutenção da escravidão e sua reprodução e extensão por sete décadas no nascente Império, representou o verdadeiro lastro de legitimidade deste Estado com as classes proprietárias.

    Mercado de Negros – pintura de Moritz Rugendas

    Na América do Sul, todos os outros processos de independência resultaram na abolição da escravidão. Na bacia platina as longas lutas pela independência criaram um espaço para a participação da plebe rural, inclusive de ex-escravos, que foram decisivas para a abolição do cativeiro nestes novos países. Mesmo locais onde a escravidão era fundamental para a lavoura de exportação, como Peru, Venezuela e Colômbia, a abolição se concretizou durante o processo de independência ou nos anos imediatamente seguintes. A consolidação dos estados nacionais na América hispânica aconteceu com a abolição do cativeiro. No Brasil o estado nacional se consolidou com o desejo de perpetuação do cativeiro.

    Outros Projetos de Independência

    É evidente que mesmo sendo um processo dirigido “do alto”, ao final temos, com todas as limitações, um Estado Nacional em construção, um novo caminho em curso. Mas este caminho não foi dominado completamente pelas elites políticas e proprietárias. Em vários momentos fatores imponderáveis ocorreram por conta da participação de outras regiões e outros grupos sociais. Fora do foco no centro-sul do país, podemos dizer que existiram outros projetos de independência do Brasil. Entre os vários levantes ocorridos em diferentes províncias, podemos apontar os casos de Pernambuco, Bahia e Grão-Pará. Nestes casos, vemos projetos republicanos, federalistas, populares e, em alguns casos, antiescravistas todos eles revestidos por um sentimento nacionalista ainda muito difuso, conhecido por antilusitanismo.

    O antilusitanismo era um sentimento que podia abrigar diferentes projetos e inquietações. Havia o antilusitanismo entre militares, já que os cargos mais elevados da oficialidade do exército eram exercidos por portugueses natos. Existia um antilusitanismo animado por proprietários fundiários, que combatiam o monopólio regional do comércio importador e exportador, exercido pelos lusos. Nas grandes cidades, como Rio, Salvador, Recife e Belém, existia um antilusitanismo popular, de pobres brasileiros que disputavam empregos no comércio de retalhos (o varejo), dominado por caixeiros e meninos portugueses, problema que permaneceu ao longo de todo o século XIX. Considerando o modelo de Estado construído e seus grupos sociais dirigentes, o antilusitanismo era uma luta interna, de dentro da sociedade brasileira, tendo se manifestado não só nos anos de 1822 a 1825, mas ainda fortemente presente em diversas rebeliões provinciais que aconteceram no Período Regencial (1831-1840), que é parte do processo de independência e construção do Estado.

    Murillo de La Greca, Execução de Frei Caneca (detalhe), Coleção Murilo de La Greca, Recife

    Em Pernambuco temos uma série de levantes, a começar com a Revolução de 1817, quando os rebeldes tomaram o poder na então Capitania, declararam o governo Republicano e chamaram uma Assembleia Constituinte. A opção era pela independência do Brasil e a construção de um governo Republicano e Federativo. Seguiam o lastro das independências americanas, a partir de uma noção ilustrada de luta anti-absolutista e na defesa de um poder político constitucional. Participaram setores médios, funcionários públicos, sacerdotes e militares. Este republicanismo pernambucano se manifestou novamente em 1824, com a Confederação do Equador, uma luta contra a imposição da Constituição de 1824 e o poder centralizador do Rio de Janeiro. Na guerra de resistência dos rebeldes pernambucanos de 1824 destacaram-se a presença e forte atuação de Batalhões populares, comandados por Frei Caneca, mas integrados por negros livres e libertos, o que despertou o temor ao “Haitianismo” no Brasil. Em 1848, com a revolta Praieira, se encerra este ciclo de insurgências. Ao contrário do que o governo do Rio de Janeiro acusava (imprecação sustentada pela historiografia predominante no século XIX), os rebeldes de Pernambuco de 1817, 1824 e 1848 não eram separatistas, eram defensores de um projeto republicano e federalista para todo o país e tinham, entre seus participantes, capixabas, mineiros e inclusive o paulista Antônio Carlos de Andrada, irmão de José Bonifácio, que estava em Recife em 1817.

    Na Bahia aconteceu a guerra de independência entre junho de 1822 e julho de 1823. Tendo suas primeiras escaramuças a partir de fevereiro de 1822, quando ficou evidente que o governo militar do Brigadeiro Madeira de Mello, fiel às Cortes de Lisboa, atacava os brasileiros que desejavam construir um governo próprio, mesmo dentro do estatuto do Reino Unido com Portugal. As ações na Bahia foram ditadas por uma dinâmica própria, com forte participação popular, empurrando o governo do Rio à declaração de Independência no segundo semestre de 1822. Nesta guerra, as forças brasileiras, improvisadas com a participação de escravizados e libertos, foram bem-sucedidas no cerco e derrota das tropas lusitanas. Muitos ex-cativos tinham abandonado proprietários portugueses e sentado praça como soldados do exército em formação. As proclamações de “independência” e “luta pela liberdade” que tinham um sentido próprio aos fazendeiros do Recôncavo Baiano, significavam para a população negra o fim da escravidão. Os negros chegaram a formar um batalhão próprio, o Regimento dos Periquitos, que teve papel decisivo nas batalhas contra os portugueses, mas depois foi desmobilizado pelo governo brasileiro, tendo sido seus soldados enviados a outras Províncias, com o temor de representarem o “haitianismo”, uma possibilidade de levante armado dos “de baixo”.

    Mesmo no Rio de Janeiro, sede do novo Império, o crescimento da tropa do exército, realizado às custas de um recrutamento militar forçado entre as classes populares, é o retrato das contradições do Brasil independente. Há uma oficialidade branca, majoritariamente portuguesa, que teme a tropa, independente, turbulenta, negra e com tendências ao “haitianismo”. Gladys Sabina Ribeiro relata vários incidentes de insubordinação e ação política direta deliberada da tropa contra a oficialidade. Questões raciais estavam misturadas a divisões de classe e de nacionalidade.

    Bênção das bandeiras da Revolução de 1817, Antônio Parreiras

    No porto de Belém, então capital da Província do Grão-Pará (que na época englobava toda a atual região norte do país), a adesão a independência aconteceu em agosto de 1823, quando uma unidade da recém-formada Marinha do Brasil, chefiada pelo Almirante Grenfell, apareceu na cidade e recebeu a adesão da Junta Governativa local, que até então era subordinada a Lisboa. Mas os conflitos se intensificam nos meses seguintes. Como o porto de Belém era dominado por comerciantes portugueses, com a participação de alguns ingleses e franceses, a situação da Província não tinha mudado em nada. Os principais empregos na administração pública ainda eram exercidos por portugueses natos. A única mudança que tinha acontecido era a adesão ao governo de Pedro I, no Rio de Janeiro.

    O papel do comércio português sobre o vale amazônico tem sido recuperado por estudos mais recentes. Diferente de outras províncias, onde o domínio territorial acontecia pela formação de lavouras de exportação, no Grão-Pará o domínio português acontecia pelo comércio na bacia amazônica a partir do porto de Belém. O comércio de “haviação”, onde os caixeiros das casas de Belém vendiam mercadorias manufaturadas, armas, sal e tecidos para as populações ribeirinhas em troca de produtos da floresta (em Haver), as chamadas “drogas do sertão”, como castanha do Pará, urucum, madeiras especiais, peles e couros e outros artigos da floresta. Era uma troca absolutamente desigual, que mantinha as populações ribeirinhas na pobreza e no endividamento com os comerciantes “haviadores”

    Em outubro de 1823 houve o levante da guarnição do exército em Belém, sendo a tropa formada por descendentes de indígenas e africanos, com queixas quanto ao atraso no pagamento de soldos e privilégios que os portugueses continuavam usufruindo. Esta rebelião tomou conta das ruas da cidade. Houve uma união entre a tropa e o povo, com saques a casas comerciais de portugueses e outros europeus. Por pouco os amotinados não tomaram as armas e munições do arsenal provincial, que seria distribuído a todo o povo. Com muita dificuldade a rebelião popular foi contida, tendo mais de 250 soldados e populares presos e remetidos a um navio da esquadra de Grenfell, o brigue “Palhaço”. Ali, os prisioneiros foram acumulados num apertado porão e asfixiados por pó de cal arremessada pelos carcereiros. Apenas 1 preso sobreviveu. Ironia da independência: a força da Marinha a serviço do Estado brasileiro aliou-se a portugueses para reprimir um levante de brasileiros.

    A experiência traumática da independência do Pará não ficou impune. Na década seguinte os mesmos setores populares se insurgiram contra o poder local “lusitano” e “Caramuru”, no movimento conhecido como Cabanagem, que estendeu-se até 1840 e em sua repressão, um terço da população da província foi massacrada.

    O fim do Primeiro Reinado e as Regências

    Em 1826, com a notícia da morte do Rei João VI, em Portugal, a possibilidade de reversão da independência passou a ser seriamente questionada, já que o Imperador do Brasil, Pedro I, era o filho mais velho do Rei morto, sendo imediatamente lembrado como herdeiro do trono português. Pedro I renúncia “condicionalmente” ao trono português, indicando sua filha mais velha, Maria da Glória, como sucessora. Como Maria da Glória só possuía 5 anos, formou-se uma Regência em Lisboa, sendo o trono luso ocupado por Miguel (irmão mais novo de Pedro) na condição de Regente.

    Em 1828 o Regente Miguel opera um golpe político, coroa-se como Rei de Portugal e interna a Princesa Maria da Glória em um convento. Pedro I, no Brasil, considera o golpe de seu irmão como um ato de deslealdade que cancelava sua anterior “renúncia condicional”. Desta maneira, Pedro I passa a apoiar a oposição portuguesa ao Rei Miguel, envolvendo o Brasil na guerra de sucessão ao trono luso. Como naquele período o governo de Pedro I já acumulava vários desgastes internos, como a renovação dos Tratados de Aliança, Comércio e Navegação com a Grã-Bretanha (em condições muito desfavoráveis ao Brasil), a derrota na Guerra Cisplatina e a perda do Uruguai, a falência do Banco do Brasil, o incidente da morte do jornalista Líbero Badaró em São Paulo, cresceu em todo o país um forte movimento pela derrubada do Imperador.

    Este movimento ganhou uma dinâmica e força próprias nos meses de março e abril de 1831, na cidade do Rio de Janeiro, onde novamente houve união do povo e da tropa do exército contra o domínio lusitano. O episódio da noite das garrafadas foi parte deste processo. A expulsão do Imperador, conhecida com o nome pasteurizado de “Abdicação”, ocorrida em 7 de abril de 1831, representou um momento importante da luta antilusitana impulsionada por setores populares da Capital do Império.

    No entanto, as classes proprietárias assumem o comando político do Estado através dos diferentes governos regenciais. Uma das primeiras medidas da Regência foi a desmobilização de grande parte da tropa do exército, considerada “turbulenta” e “haitiana”, tendo se organizado, a partir de então, uma nova força militar chamada Guarda Nacional, que tinha como critério o preenchimento de seus efetivos a partir dos cidadãos qualificados para votar (portadores de renda anual acima de 200 mil réis). A oficialidade desta Guarda Nacional passou a ser ocupada por grandes fazendeiros, sentando as raízes institucionais do novo Estado.

    Ao longo dos anos seguintes há um esforço do novo Estado de afirmação de sua autoridade sobre o restante do país. É um processo complexo, sem consensos, pois o período das Regências será nova oportunidade de se manifestarem projetos federalistas e republicanos. Mesmo entre as classes proprietárias de diferentes regiões, as disputas resultaram em insurgências e guerras regionais. Mas parte significativa das rebeliões regenciais continuou por impor as demandas das classes populares, demandas contra o recrutamento forçado, às ameaças de reescravização e lutas pela terra.

    Penso que as questões levantadas são importantes para refletir sobre o bicentenário, pois o Brasil ainda precisa construir-se como nação e, efetivamente, ainda precisa construir sua real independência. A lembrança de disputas, projetos e insurgências é importante para recuperar o protagonismo e a capacidade de luta do povo brasileiro, que sempre foi forte e, em um sentido amplo, esteve presente na luta pela independência.

    Bibliografia:

    CABRAL DE MELLO, Evaldo. A outra independência: Pernambuco 1817 e 1824. São Paulo: Ed. Todavia, 2022.

    CARVALHO, José Murilo. O Teatro de sombras e a construção da ordem. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

    DIAS, Maria Odila. A Interiorização da Metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda, 2009.

    KRAAY, Hendrik. Em outra coisa não falavam os pardos, cabras e crioulos: o “recrutamento” de escravos na guerra da Independência na Bahia. Revista Brasileira de História, São Paulo, v.22, n.43, 2002.

    LEAL, Bruno e CHAVES, José Inaldo (orgs.) Várias faces da Independência do Brasil. São Paulo: Contexto. 2022.

    MALERBA, Jurandir (org.) A Independência brasileira, novas dimensões. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2006.

    RICCI, Magda. Dias trágicos: massacre no Grão-Pará fez mais de 250 mortos entre os defensores da independência. Revista de História. Rio de Janeiro. 2009.

    VILLALTA, Luiz Carlos. A longa viagem da ideia de Independência: de fins do período colonial aos inícios de 1822. Ou as Independências que a “Independência do Brasil” sepultou. Ciência e Cultura, vol. 74, 2002.

    Texto publicado em http://acoluna.org/2022/08/19/o-bicentenario-da-independencia-historia-e-projetos-de-brasil/?fbclid=IwAR27S8JvKRqItfefkA7f-jgjR-vxRWg4yRileYkLoOPqq_W2Zbrv09kgzz4


  • Nota contra o fechamento do PPGHIST – UNISINOS

    Publicado em 26/07/2022 às 17:24

    Nota contra o fechamento do PPGH-UNISINOS

    O corpo docente do Programa de Pós-Graduação em História da UFSC recebeu com consternação a notícia do fechamento do prestigioso PPGH-UNISINOS. Trata-se de um programa extremamente importante para o campo, com docentes e discentes responsáveis por pesquisas centrais na interpretação da trajetória histórica e dos desafios da América Latina, além de manter um dos mais importantes periódicos científicos nacionais, a revista História Unisinos. No atual contexto de ataques ao conhecimento científico e à pesquisa acadêmica, com a proliferação de discursos de ódio baseados em mentiras e manipulações, a decisão da Reitoria da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, mantida pela Associação Antônio Vieira, de “descontinuar” este e outros programas de pós-graduação, é mais um duro golpe contra todos os cientistas e pesquisadores que buscam construir uma sociedade pautada na solidariedade, na honestidade e na responsabilidade social. Assim, o PPGH/UFSC manifesta seu profundo repúdio a tal decisão, assim como manifesta sua solidariedade à toda a comunidade acadêmica e colegas da UNISINOS.

    Sem mais, assinam:

    Fábio Augusto Morales Soares (docente, coordenador)

    Paulo Pinheiro Machado (docente, sub-coordenador, professor titular)

    Ana Lúcia Vulfe Nötzold – professora titular

    Beatriz Gallotti Mamigonian – professora titular

    Cristina Scheibe Wolff – professora titular

    Eunice Sueli Nodari – professora titular

    Sidnei J. Munhoz 

    Henrique Espada Lima

    Yoanky Cordero Gómez

    Adriano Duarte

    Janine Gomes da Silva

    Maria Bernardete Ramos Flores

    Daniela Queiroz Campos

    Maria de Fátima Fontes Piazza

    Waldomiro Lourenço da Silva Junior

    Ana Carolina Machado 

    Talita Fernandes Araujo

    Nathan Lermen

    Kerollainy Rosa Schütz

    Bruna Cataneo Zamparetti

    Jéssica Thaíse Gielow 

    Leonardo Araújo Travassos

    Renata Dariva Costa (discente PPGH-UFSC)

    Luciano Daudt da Rocha (Doutor em História pela UFSC e Licenciado em História pela UNISINOS)

    Ana Lilia Félix Pichardo (discente PPGH-UFSC) 

    Kimberly Terrany Alves Pires (discente PPGH-UFSC)

    Vittória Menezes Vargas (discente PPGH-USFC)

    Athaysi Colaço Gomes 

    Aline Dias dos Santos (discente PPGH – UFSC)

    Cristiane Garcia Teixeira (discente PPGH – UFSC)

    Luciana Paula Bonetti Silva (discente PPGH – UFSC)

    Darlan Damasceno

    Andrea Silva Domingues  (PNPD do PPGH UFSC)

    Guilherme Pagnoncelli (discente PPGH-UFSC)

    Alina dos Santos Nunes (discente PPGH-UFSC)

    Joaquim Paka Massanga (Doutor em História pela UFSC)

    Dyel Gedhay da Silva (discente PPGH-UFSC)

    Kassia Rossi (discente PPGH-UFSC)

    Thiago Umberto Pereira (discente PPGH-UFSC)

    Ana Cristina Peron (discente PPGH-UFSC)

    Julio Cesar Vieira (discente PPGH-UFSC)

    Aline Dias da Silveira (docente PPGH-UFSC)

    Joelson Lopes Maciel (discente PPGH-UFSC)

    Dandara de Oliveira (discente PPGH-UFSC)

    Felipe Fonseca (discente PPGH-UFSC)

    Beatriz Pereira da Silva (discente PPGH-UFSC)

    Marco Antônio Marcon Pinheiro Machado (discente PPGH-UFSC)


  • Lançamento do Livro: O Lugar do Contestado na História do Brasil

    Publicado em 06/07/2022 às 20:21

         Por iniciativa do Grupo de Investigação sobre o Movimento do Contestado, com apoio do CNPQ e da FAPESC, no dia 13 de julho próximo será lançado o livro “O Lugar do Contestado na História do Brasil“, obra organizada por Márcia Espig, Alexandre Assis Tomporoski, Delmir José Valentini, Paulo Pinheiro Machado e Rogério Rosa Rodrigues.

          O livro abre o diálogo entre pesquisadores sobre o movimento do Contestado e estudiosos de outros movimentos sociorreligiosos, como os Muckers, Canudos, Caldeirão e Pau de Colher. Há capítulos que mostram a pesquisa histórica atualizada nesta área e há também um grande diálogo com as experiências de ensino destes conteúdos nas redes públicas de ensino.

           O lançamento será as 19h por plataforma digital  https://www.youtube.com/watch?v=GvmXYxRhjco&ab_channel=VISimp%C3%B3sioNacional-Contestado

       


  • Lançamento: Fronteiras da História. Atores sociais e historicidade na fronteira do Brasil Meridional

    Publicado em 18/12/2021 às 15:10

    Trata-se de um livro organizado por Anderson Schmitt e Murilo Witter, que trata da história da fronteira sul do Brasil entre os séculos XVIII e XX.

    Ali tenho um modesto capítulo intitulado: “O mundo agrário e as tradições rurais no conflito do Contestado (1912-1916)”. O livro pode ser baixado gratuitamente pelo link: https://www.uffs.edu.br/institucional/reitoria/editora-uffs/fronteiras_na_historia_atores_sociais_e_historicidade_na_construcao_do_brasil_meridional_seculos_xvii_xx

     


  • ANPUH- 2021 – Mesa Diálogos Contemporâneos – Movimentos sociais rurais na historiografia e nas ciências humanas, por Paulo Pinheiro Machado.

    Publicado em 11/08/2021 às 12:31

    O Brasil é um continente. Não há como tratar um tema desta envergadura sem reconhecer as dificuldades em se apurar as distintas formas de construção do território e de relações sociais peculiares que se desenvolveram em suas diferentes regiões. Nesta fala, gostaria de me concentrar em alguns aspectos importantes no estudo de movimentos sociais rurais: suas fontes, suas abordagens metodológicas, suas relações com os contextos políticos e sociais.

    Em primeiro lugar, como todos sabemos, existe uma longa série de estudos históricos, além de relatos de viajantes, jornalistas, médicos, sacerdotes e militares que analisaram os movimentos sociais rurais dos períodos da Colônia, Império e início da República, em sua grande maioria com olhares urbanos e eurocentrados. Tinham como postura intelectual constante a reprodução do discurso colonizador oficial, a visão de um país incivilizado, incompleto e de uma população desqualificada por suas origens étnicas e raciais. As manifestações populares, tanto urbanas como rurais, eram vistas, nas versões mais generosas, como espasmos de indivíduos tangidos pela fome e pelas mais diferentes carências e, nas abordagens mais preconceituosas, como manifestação de aberrações irracionais, fanatismo religioso ou formas de banditismo e pura criminalidade. Para o professor Pedro Lima Vasconcellos, analisando a obra de Euclides e associando com a visão de Frei Vicente do Salvador, ainda no século XVII, existia a visão predominante de que o Diabo está no Sertão! ( http://books.scielo.org/id/pdkdq/pdf/ferraz-9788578791186-11.pdf).

    Trata-se de um conjunto de visões com preconceito de classe associado ao preconceito racial e à desqualificação de populações rurais. Estas imprecações eram pesadamente atribuídas aos movimentos sociorreligiosos mais conhecidos do início do período republicano, como a concentração de Juazeiro, o povoado de Belo Monte, mais conhecido como Canudos e a Guerra Sertaneja do Contestado. Mas para períodos anteriores da história brasileira, estas desqualificações estavam presentes em muitas crônicas e relatos dos movimentos do Reino da Pedra, da Cabanada pernambucana e alagoana no início da Regência, a Cabanagem do Grão-Pará, a Balaiana do Maranhão e no Piauí e muitos outros. Sobre os rebeldes das matas limítrofes entre Pernambuco e Alagoas, no estudo realizado por Marcus de Carvalho, a imprensa liberal de Recife se referia como sendo de um conjunto de “escravos, indígenas e ladrões” . Além das origens raciais, os rebeldes cabanos eram chamados de ladrões por praticarem o costume de fazer investidas a fazendas e engenhos de cana, para a libertação de cativos, no caso, uma violação à sagrada propriedade.

    Como visto, as fontes majoritariamente disponíveis sobre estes movimentos demandam formas de leitura a contrapelo. A imprensa, os relatórios policiais e militares, a correspondências de Chefes políticos locais com Governadores e oficiais do Exército, dos Regimentos de Ordenanças e da Guarda Nacional e, algumas vezes, quando integrantes das classes populares são levados à julgamento, os processos judiciais, são fontes produzidas por setores sociais majoritariamente hostis às populações rurais. Mas o desafio da compreensão destas fontes tem resultado em teses e dissertações muito relevantes para a recuperação do protagonismo rural popular.

    Na longa história brasileira, fugir das autoridades, ficar distante das capitais, portos, Vilas e Quartéis era uma maneira mais segura para se viver. Não sendo escravo, o brasileiro livre ou liberto estava sujeito a outras formas de constrangimento de sua vida – principalmente o recrutamento militar e a tributação. A tese do professor James Scott sobre populações que fogem do Estado é bem-sucedida para explicar muitos fenômenos demográficos no nosso país, os indígenas buscam o sertão mais remoto, tal como fizeram os quilombolas e muitos homens e mulheres livres pobres. Em grande medida, ondas de interiorização da população nacional foram estimuladas não apenas pela atração dos biomas, busca de novos solos, pastos e novas oportunidades de trabalho, mas também para ficar mais distantes de autoridades como Capitães-Mores, Juízes de Paz, Oficiais da Guarda Nacional e outros. Desde o período colonial é claro o tratamento de pobres insurgentes. Na pesquisa de Luciano Figueiredo sobre as Quimeras de Minas, a repressão aos pobres insurgentes deveria ser tão drástica como à dedicada aos escravos fugitivos, dizia um soldado português: “esta guerra só se deve fazer como quem vai investir num quilombo de negros”.

    Chama a atenção a manutenção do padrão de ocupação territorial colonial, mesmo depois da independência política formal. O brasileiro pobre é um indivíduo suspeito, por natureza. Mesmo antes das leis que o desqualificavam moralmente como “vadio”, já era objeto de captura. O problema para as autoridades não é o conjunto da população rural. Boa parte desta população, livre ou cativa, estava sob o controle de proprietários fundiários, sujeitos à sua disciplina e mando local. Mas há grande número de pequenos fazendeiros, lavradores, posseiros, pescadores, trabalhadores por empreitada, tropeiros, pessoas do meio rural que trabalhavam para si, que foram o alvo de capturas para preenchimento de cotas do recrutamento militar. Ser recrutado era quase uma experiência de reescravização, tais as exigências que tinham que ser cumpridas, como o trabalho compulsório em obras públicas, os castigos corporais e as transferências de região.

    A época das Regências foi pródiga nestas violências. A desmobilização do exército ao final do I Reinado e início das Regências representou uma importante oportunidade de ação de militares identificados com um certo anti-lusitanismo popular, que teve diferentes formas ao longo do séc. XIX. Quando se acirravam disputas políticas locais, o recrutamento militar da clientela dos adversários políticos era uma forma de se penalizar os opositores do governo. Em grande medida, um número significativo de conflitos ocorreu com a reorganização dos poderes locais nas décadas seguintes à independência. O final dos Regimentos de Ordenanças, a organização dos Juizados de Paz e da Guarda Nacional criaram forte abalo e novas disputas nas estruturas de poder local, fazendo com que facções oligárquicas adversárias apelassem à participação da plebe rural nestes conflitos. Os diferentes movimentos ocorridos na Regência demonstram que em vários momentos esta plebe rural não agia apenas através dos liames clientelísticos. Em vários momentos impôs suas demandas, lutando de maneira descolada de seus tradicionais chefes políticos.

    A itinerância do trabalho extrativo e a busca por novas terras longe dos grandes fazendeiros fazia com que a choupana típica dos brasileiros livres fosse muito precária e bastante semelhante às malocas indígenas, assim eram descritos os nacionais pobres chamados de vadios. A mobilidade da população nacional era vista como mais um fator de vadiagem por parte de governantes. Em estudo dos anos anteriores a Balaiada, no Maranhão, Mathias Rohring Assunção aponta a preocupação do Comandante Geral da Província, Alves de Carvalho, sobre a existência de grande número de “vagabundos e ladrões”, na parte leste da Província:

    Dizia o Comandante, em 1826:

    “pois que com esta qualidade de gente não deve haver contemplação alguma. Castigo temporal, tenho experimentado que de nada serve, são soltos e tornam a mesma vida com dobrada audácia fazendo-se por isso inútil as diligências em que trabalho para limpar o meu Distrito deste flagelo da raça humana. Sua Majestade Imperial precisa de braços para a Marinha e obras públicas, estes indivíduos podem ser empregados nestes trabalhos, porque de todas as formas, é benefício comum.” 

    Na repressão à Cabanagem no Grão-Pará, uma das guerras internas mais violentas já realizada no Brasil, em estudo realizado por Magda Ricci, o Presidente da Província encaminhava os prisioneiros que ainda não tinham sido executados para uma corveta em Belém, que deveria mandar os capturados para trabalhar em outras Províncias. Dizia o Presidente , General Soares de Andrea em 1838:

    “muitos poucos destes serão inocentes; mas a falta de clareza com que foram recolhidos, faz que não saiba deles senão o crime geral de serem do partido dos rebeldes…Como quer que seja, são homens perigosos nesta Província, e que podem ser úteis em outra, ou trabalhando pelos seus ofícios, ou como grumetes, com tanto que aqui não voltem…”

    O relato de Andrea mostra como homens presos indistintamente eram arrancados de suas localidades e recrutados para a Marinha como penalização por sua identificação com o “partido rebelde”. Mesmo assim reconhece que alguns inocentes eram arrastados para este exílio já que havia “falta de clareza” nas suas capturas no interior do vale amazônico.

    O castigo recomendado era o recrutamento militar, para a Marinha, Exército e para os mais remediados, a soldadesca da Guarda Nacional. Quando o Comandante se refere as carências da Marinha ele não esconde que necessita de “braços”, igualmente para obras públicas. A citação também revela uma atitude recorrente de forças policiais e autoridades locais em prender e castigar fisicamente os ditos vadios, mesmo que os castigos corporais já fossem proibidos pela Constituição de 1824.

    Do ponto de vista legal esta plebe insurgente foi objeto das mais distintas formas de enquadramento e criminalização. A professora Mônica Duarte Dantas aponta para o período colonial o enquadramento como “crime de lesa Majestade” no Livro V das Ordenações Filipinas. A partir do Código Criminal de 1830, os indivíduos poderiam ser condenados por “crimes contra a segurança interna do Império e pública tranquilidade”, sendo definidos mais especificamente os crimes de “conspiração, rebelião, sedição, insurreição, resistência, tirada ou fugida de presos e arrombamento de cadeias e desobediência às autoridades”. Se a prisão celular era a principal pena aos livres, aos escravos as penalidades eram agravadas para morte, galés perpétuas e para penas mais leves, galés por 15 anos e açoites.

    Os camponeses compulsoriamente recrutados também foram participantes de muitos movimentos. As experiências militares nas guerras de Independência, nas guerras da Regência, na Guerra do Paraguai e na Revolução Federalista (1893-95) formaram diferentes gerações de sertanejos que passaram por experiências de combate que foram incorporadas aos seus posteriores costumes e práticas rebeldes. O bandoleirismo e o banditismo são fenômenos que se desdobram destes processos, mas frequentemente estão associados aos conflitos dentro das esferas de poder local e também presente nos movimentos sociais. Sem dúvidas, o bandoleirismo rural merece estudos mais focados em suas atuações políticas e militares, sem que se deva necessariamente enquadrar no figurino de banditismo social. Nem sempre a atuação dos bandidos significa a latência de uma revolta camponesa.

    Por algum tempo a historiografia se concentrou no estudo biográfico de chefias sertanejas para explicar os movimentos sociais rurais. Isto é um problema sério, pois é fundamental entender as decisões e iniciativas das lideranças sertanejas não como relampejos individuais, iluminados e de vanguarda, mas como intérpretes e correspondentes das expectativas e demandas dos sertanejos. Por mais importantes e carismáticas que tenham sido as lideranças rurais, o crescimento dos movimentos sociais se deu por adesão consciente e demandas colocadas por seus seguidores, que mais que seguidores se converteram em combatentes. A biografia de Antônio Maciel não explica Canudos, assim como Padre Cícero não explica Juazeiro e, principalmente os movimentos seguintes de Caldeirão e Pau de Colher.

    Os movimentos sertanejos não apresentaram apenas líderes carismáticos. Também inventaram instituições locais, como cortes celestes, grupos de beatos e Capelães de Terço, reinventaram apóstolos e Guarda Católica, construíram unidades de “Pares de França” ou “Pares de São Sebastião”, desenvolveram grande número de meios organizativos em suas experiências comunitárias. As comunidades, cidades santas, povoações e irmandades sertanejas demandam mais estudos, tanto de memórias, testemunhos, cruzamento de relatos, como da própria cultura material, como o professor Francisco Régis Lopes Ramos vem fazendo em relação aos objetos do Caldeirão.

    No estudo das fontes sobre os conflitos do século XIX e primeiras décadas do século XX outro problema aparece para reflexão. A linguagem dos sertanejos apontados como rebeldes, mesmo em meio aos discursos de desqualificação das fontes militares e judiciárias, frequentemente reproduz o discurso de deferência à “Monarquia e a Santa Religião”.  Muitos se apresentam em nome da pessoa do Imperador, seja na figura de Pedro I que estava fora do país entre 1831 e 34, ou em nome do menino Pedro II, antes da Maioridade. A pesquisa histórica mais recente confirmou estas teses entre os Balaios, Cabanos, Conselheiristas e caboclos do Contestado.

    Neste aspecto há que considerar algumas ordens de questões. Os sertanejos, na maior parte dos movimentos citados, não se apresentaram como rebeldes, foram assim tratados pelo Estado. Em muitas circunstâncias as populações rurais lutaram apenas para a manutenção de suas condições de vida, de seus direitos tradicionais. As noções de deferência ao poder monárquico, herdadas do Antigo Regime certamente ainda tinham um forte enraizamento popular, principalmente por se tratar de um poder destacado e diferenciado do poder local e provincial dos grandes proprietários e seus sistemas oligárquicos. Esta fissura, que se apresenta em muitas regiões do Brasil durante o Império, ficou mais evidente com a República e todo o processo de violência e exclusão popular que este regime inaugurou. Outra vertente, que não pode ser desconsiderada, é a formação de uma noção popular de Monarquia, uma adaptação da leitura dos textos religiosos católicos, que pugnavam a luta por um “Governo do Céu”, como projetos de ruptura com o mundo circundante dos fazendeiros, dos militares e das oligarquias.

    Entender a linguagem dos movimentos sóciorreligiosos é um desafio ainda atual. Embora seja correto em linhas gerais, não é suficiente caracterizá-los apenas como movimentos camponeses que lutaram por terra, ou movimentos anti-oligárquicos que enfrentaram o Coronelismo e outras formas de poder local. A componente de religiosidade popular que cimentou as experiências de Canudos, Juazeiro, Contestado, Caldeirão, Pau de Colher não foi um conjunto residual de manifestações sertanejas. Então, para enfrentar a questão religiosa dos sertanejos não basta denunciarmos as visões preconceituosas que os enquadravam como “fanáticos”. Com a ajuda da medicina lombrosiana e o evolucionismo spenceriano se construiu um ambiente intelectual que considerou o denominado “fanatismo” como manifestação do atraso, da incultura e irracionalidade da população sertaneja. Esta imprecação do “fanatismo”, mais do que um conceito elaborado, não passava de uma descrição externa de intelectuais urbanos que não conseguiam entender que o mundo sertanejo vivia um universo cultural e costumeiro próprio. Uma verdadeira barreira cultural precisava ser transposta para que o mundo sertanejo pudesse ser entendido em suas motivações e projetos.

    Durante os anos 1950 e 1960 na nascente sociologia brasileira, houve a crítica e o abandono da noção de fanatismo e passou a se utilizar o conceito de messianismo para o entendimento de vários movimentos sociorreligiosos. O conceito de origem teológica teve muitos problemas na sua aplicação no Brasil. Pronto de identificou que poucos movimentos se encaixavam neste tipo de conceituação, pensada ainda como parte da herança judaico cristã. Além disso, a noção de messianismo estava embasada num conceito de manifestação de anomia social manifestada por comunidades impactadas por fortes processos de modernização. Em que pese as importantes contribuições de Roger Bastide, Maurício Vinhas de Queiroz e Maria Isaura Pereira de Queiroz para o estudo do Contestado e outros movimentos, estes autores não deixavam de considerar estes movimentos messiânicos como uma manifestação de “autismo”, uma espécie de “patologia social”.

    A partir da década de 1970, com os estudos de Duglas Teixeira Monteiro, que passa a entender os sertanejos que participaram do movimento do Contestado como “pessoas normais”, é deslocado o conceito de messianismo e adotada a visão weberiana de Reencantamento do Mundo para explicar o fenômeno “milenar” estudado. Duglas fez especial esforço para compreender os gestos de ruptura dos sertanejos com o mundo circundante, com o desenvolvimento de novas formas de compadrio, diferentes costumes sociais sendo inventados e construídos nas “cidades Santas” do Contestado.

    Especial atenção foi dispensada por Duglas e pesquisadores mais recentes sobre a religiosidade sertaneja. O estudo de preces e práticas religiosas tem ganhado novos significados tendo em vista suas diferentes origens. A prática de portar patuás com rezas fortes para fechar o corpo de guerreiros, incorporava uma síntese peculiar de práticas religiosas não-europeias.

    Talvez, o desafio de entender os movimentos sociorreligiosos brasileiros é compreender sua mestiçagem, é buscar o entendimento de sistemas de identificação e leitura do mundo, de construção de uma religiosidade popular que imprimiu a construção de projetos comunitários específicos, a partir da incorporação de tradições religiosas africanas, indígenas e europeias.

    Pensar o mundo rural ontem e hoje continua a ser pensar na cidadania e condições de vida de nossas sofridas populações do interior. Bom dia!


  • Lançada versão digital de “A Política de Colonização do Império”

    Publicado em 03/03/2021 às 22:49

    A Editora da UFRGS acaba de colocar disponível, de forma gratuita, a versão digital do livro “A Política de Colonização do Império”, que teve sua primeira edição (1.000 exemplares) publicada em 1999 e uma reimpressão (mais 500 exemplares) publicada em 2011. O livro físico se encontrava novamente esgotado. Agora acabaram os problemas. Para ler ou baixar o livro basta acessar o link https://lume.ufrgs.br/handle/10183/218284


  • Carta para a Cidade de Nova Veneza – SC

    Publicado em 16/02/2021 às 21:32

               Os indígenas Laklano-Kaingang mandaram a mensagem abaixo para a população de Nova Veneza, cidade da região colonial italiana do sul de Santa Catarina, fazendo um apelo para que não seja feita uma homenagem em praça pública ao “pioneiro” da região que foi responsável pelo assassinato de mulheres, homens, crianças e idosos indígenas que viviam aldeados na região. A atividade bugreira (assim chamavam os caçadores de “bugres”), documentada por muitos pesquisadores  – como Sílvio Coelho dos Santos e outros. É um dever de memória, questão de respeito e obediência aos Direitos Humanos, respeito aos remanescentes indígenas, respeito à humanidade como um todo.


  • UMA FUMAÇA SUBINDO NO VOLGA: 78 ANOS DE BATALHA INTERMINÁVEL DE STALINGRADO

    Publicado em 02/02/2021 às 14:50

                Dizem que a batalha de Stalingrado terminou no dia 2 de fevereiro de 1943, quando as últimas unidades alemãs se renderam ao exército soviético, depois do comandante do 6º. Exército alemão, Marechal Friedrich Von Paulus, assinar rendição incondicional em 31 de janeiro. A cidade era um amontoado de escombros, verdadeiras ruínas após uma batalha de 7 meses de duração. Em Stalingrado morreram mais de 1 milhão de soldados e civis soviéticos, preço altíssimo pago pelo enorme sacrifício, mas que resultou no esforço fundamental para paralisar a máquina de guerra nazista. Ali, o exército alemão perdeu mais de 700 mil soldados, incluindo tropas do eixo, como italianos, húngaros, croatas e romenos, além de grande quantidade de blindados, artilharia e aviação.

               Nas últimas oito décadas uma outra batalha de Stalingrado se desenvolveu: a luta por impor uma versão da batalha e do conjunto da guerra no leste europeu que desqualificava os vitoriosos.  Por incrível que pareça, toda história da frente oriental, a grande guerra entre Alemanha Nazista e a União Soviética entre 22 de junho de 1941 e 9 de maio de 1945, foi contada pelos que perderam. Os generais alemães foram as principais fontes da historiografia ocidental, que desqualificava os historiadores soviéticos como produtores de “obras de propaganda”, enquanto davam vazão aos relatos de Von Meinsten, Hans Guderian, Halder e outros generais nazistas, considerados como “militares profissionais”. O ambiente de Guerra Fria, pós-1945, deu um empurrão decisivo para este processo. Sem esquecer que Von Meinsten e Guderian trabalharam para o aparelhamento do Bundeswehr o exército da República Federal Alemã, organizado dentro da OTAN, depois de 1949.

               Para os generais alemães a guerra foi perdida pela vastidão dos territórios da Rússia, pela inclemência do clima, sendo citados os invernos brutais, outonos e primaveras chuvosos e lamacentos, que tornavam as poucas estradas intransitáveis. Em relação às derrotas militares, principalmente as derrotas alemãs nas grandes batalhas de Moscou (1941), Stalingrado (1942\43), Kursk (1943) os generais culpam as intromissões e os acessos de loucura de Hitler, escondendo suas responsabilidades, tanto pelos erros militares como pelos brutais crimes de guerra praticados. Mencionar méritos do exército vermelho, nem pensar. Para os alemães, os soviéticos venceram por seus números avassaladores, por quantidades intermináveis de soldados e equipamento.

                Algumas perguntas ficam sem resposta: será que os alemães não conheciam o clima e as condições naturais da União Soviética? Mesmo os soviéticos conseguindo mobilizar número maior de soldados, esta superioridade numérica só foi significativa a partir de 1943, e nunca na proporção de 1:8 como defendeu Von Meinsten. Alguns historiadores ocidentais alegaram também a enorme quantidade de material bélico e de suprimentos em geral que a Grã-Bretanha e os EUA passaram para a União Soviética dentro do Programa de Empréstimo e Arrendamento, como significativos para a vitória do exército vermelho. Estes suprimentos foram importantes, mas só chegaram à URSS em volumes significativos depois do segundo semestre de 1943, quase como uma compensação por não terem ainda aberto uma segunda frente, que só ocorreria em julho de 1944, com os desembarques na Normandia. Desta forma, na batalha de Stalingrado o exército vermelho teve que contar com seus próprios recursos. Os historiadores militares Jonathan House e David Glantz, que pesquisaram em arquivos soviéticos abertos depois de 1991, confirmam estes dados.

    A guerra antes de Stalingrado

                  O confronto de Stalingrado aconteceu no segundo ano da guerra na frente oriental. No primeiro ano, 1941, houve a invasão inicial, a conquista de vastos territórios da Bielorrússia, Ucrânia, Moldávia, países bálticos e toda uma parte ocidental da Rússia. Mas a chamada Operação Barbarossa, que contava com a rapidez na ação e um golpe demolidor que colocaria abaixo o Estado Soviético, fracassou. Hitler afirmava que a União Soviética era um “edifício podre”, que bastava um chute com força para que desmoronasse.  A invasão iniciada na madrugada de 22 de junho chegara às portas de Moscou no início de dezembro. Foi a maior invasão da história, os nazistas entraram na URSS com 4 milhões de soldados, 3 mil aviões, 4 mil tanques e canhões autopropulsados, sem contar o crescente envolvimento de aliados do eixo.

                  Quando acontece a invasão, a Alemanha dominava quase toda a Europa continental, suas indústrias, seus exércitos e seus recursos estratégicos. Nos anos anteriores os nazistas ocuparam a Áustria, Checoslováquia, Polônia, Dinamarca, Noruega, Holanda, Bélgica e Luxemburgo. Em maio e junho de 1940, o exército francês, apoiado por uma missão expedicionária britânica, foi derrotado em 6 semanas pela máquina de guerra alemã. No primeiro semestre de 1941 os alemães ocuparam os países balcânicos que se opunham à ofensiva nazista: a Iugoslávia e a Grécia. Como aliados aos alemães, estavam a Itália, Bulgária, Hungria, Romênia e Finlândia. O governo espanhol mandou para a frente oriental um contingente de mais de 70 mil soldados, a chamada “Divisão Azul” que vestiu a farda nazista e participou da guerra apenas com a condição de lutar contra a URSS, sem que se envolvesse em combate com ingleses e norte-americanos, que o General Franco não queria hostilizar. Além da Espanha, voluntários fascistas de vários países ocupados e aliados à Alemanha engrossaram as forças invasoras, como a Divisão Viking, das SS, formada por voluntários dos países nórdicos. Pelo lado da URSS lutaram alguns milhares de espanhóis republicanos, asilados no país depois do fim na Guerra Civil. O Coronel Ibarruri, filho da líder comunista espanhola Dolores Ibarruri, morreu nas portas de Stalingrado, junto a uma divisão de rifles soviética que tentava frear a incursão alemã no Volga.

                   O fracasso da ofensiva alemã às portas de Moscou, em dezembro de 1941, foi seguido de uma violenta contraofensiva soviética. Na virada para o ano de 1942 os alemães foram afastados mais de 200km de Moscou, em algumas regiões, a 400 km. A União Soviética, apesar das grandes perdas em território, soldados e equipamentos nos primeiros meses de campanha, formou novos exércitos, uma nova força aérea e desenvolveu novos parques industriais ao leste.

                   A guerra colocou à União Soviética um desafio logístico e industrial gigantesco. Como a invasão alemã aconteceu na região mais rica e industrializada do país, as medidas de transferências de indústrias estratégicas para locais mais ao leste, nos Urais e na Sibéria, foram fundamentais para dar ao país capacidade de resistência para uma longa guerra de desgaste. Aproximadamente 1.500 indústrias foram transferidas para regiões orientais entre junho e dezembro de 1941. O transporte de cada indústria implicava no uso, em média, de 10 mil vagões de trens para o envio emergencial de trabalhadores qualificados, equipamentos, máquinas, ferramentas e suprimentos. Isto quer dizer que foram empregados 15 milhões de vagões em 6 meses de transferências, tudo isso feito abaixo do avanço constante das tropas nazistas, sob bombardeio nas ferrovias, entroncamentos e pontes. Neste processo fica evidente, além da capacidade de planejamento, uma incrível capacidade de improvisação que normalmente não é reconhecida na sociedade soviética. O jornalista inglês Alexander Werth, relata o caso de uma fábrica de munições, que foi transferida para uma pequena cidade nos montes Urais. A construção do barracão da fábrica foi feita pela população local, sem engenheiros na pequena cidade, as obras foram comandadas por um diretor de teatro. Abriram o chão congelado com picaretas para fazer os alicerces e construir o edifício. Em menos de 20 dias a fábrica já estava produzindo munições. Atos como este, praticados por pessoas do povo, tão importantes como a ação de soldados no front, abriram o caminho para a vitória.

                 Nas regiões ocupadas desde cedo os nazistas demonstraram que se tratava de uma guerra de extermínio. Além da perseguição a judeus e comunistas, os maus tratos às outras populações eram crescentes. As dificuldades logísticas e de abastecimento do exército invasor eram compensadas com o saque sobre os recursos e alimentos da população dos territórios ocupados, além de violações de todo tipo. O comando militar alemão tinha decretado a “Ordem dos Comissários”, que eram diretrizes para as tropas do exército executarem diretamente quaisquer indivíduos, soldado ou civil, homem ou mulher, identificados como “completamente convertidos ou como representantes ativos da ideologia bolchevique”. Instruções do exército também garantiam que nenhum soldado alemão responderia por crimes comuns em sua ação. Era uma ordem para matar indistintamente. Ordens que foram cumpridas não apenas pelas SS e seus Einsatzgruppen (grupos de extermínio), mas por tropas comuns do exército. Massacres “exemplares” passaram a ser realizados pelas tropas de ocupação para promover o terror entre os habitantes locais e abrir caminho para uma germanização destes territórios, com a futura introdução de colonos alemães. Apenas na Bielorrússia mais de 6 mil aldeias e vilas foram massacradas pelas tropas nazistas. Estas atitudes brutais foram respondidas com a crescente atividade guerrilheira nos locais ocupados. Vastas regiões de florestas e pântanos ficaram por muito tempo sob o controle de partisans que faziam operações de ataque contra quartéis, depósitos de combustíveis e munições, ferrovias, pontes, redes de comunicação e demais alvos estratégicos. Muitas tropas alemãs e de aliados tinham que ser deslocadas do front para ser empregadas na repressão aos guerrilheiros.

    Alemanha quer o petróleo do Cáucaso

                   O ano de 1942 se inicia com a Alemanha dobrando sua aposta. O revés da batalha de Moscou não havia abatido completamente o exército nazista. Além de manter Leningrado sob cerco e muitas tropas ainda relativamente próximas a Moscou, o comando alemão – a OKW – planejou uma investida maior ao sul, com a tomada completa da península da Criméia e a investida ao Cáucaso, região montanhosa entre os mares Negro e Cáspio, onde existiam importantes centros de produção petrolífera, como Maikop, Grozni e Baku. A operação, chamada “Casa Azul”, previa a tomada das regiões das bacias dos rios Don e Volga, região de extensa estepe, para proteção do flanco esquerdo da invasão ao sul. Na menor distância entre os rios Don e Volga, às margens do último, fica a cidade de Stalingrado. Antes da guerra a cidade tinha 600 mil habitantes, mas já havia recebido mais de 200 mil deslocados do Oeste, que fugiam ao avanço contínuo dos nazistas.

                O verão de 1942 começa com a ofensiva alemã ao sul, com a tomada do porto de Sebastopol, na Criméia, após resistir por 7 meses de assédio e bombardeio. Logo, a ofensiva alemã se dirige à cidade de Rostov, ao sudeste da Ucrânia, onde a força invasora se divide no grupo A, que se destinaria à tomada dos poços petrolíferos do Cáucaso e o grupo B, que rumaria ao Volga para proteger o flanco de invasão ao sul e cortar a hidrovia que ligava o Mar Cáspio à Rússia Central. Inicialmente não é clara a intenção alemã de tomar a cidade de Stalingrado, mas a aproximação das forças do VI exército alemão após a travessia do Don, acendeu esta ambição. A expansão territorial alemã entre julho e setembro de 1942 foi muito grande, além do sul da bacia do Don, região rica indústrias, minas de carvão e agricultura, a investida sobre o Cáucaso foi muito intensa, tendo tomado a região petrolífera de Maikop e se internado nos contrafortes das montanhas, próximo a Grozni e às Repúblicas Soviéticas da Armênia e Geórgia. Um dos objetivos alemães era obtenção da adesão da Turquia ao eixo, o que reforçaria a posição alemã para uma incursão no Oriente Médio.

                 Com a aproximação das tropas nazistas de Stalingrado, entre julho e agosto de 1942, a ordem de tomar a cidade foi dada. O nome da cidade em si, representava um trunfo político que Hitler queria exibir. Além disso, Stalingrado era um centro industrial relevante, além de destacado entroncamento ferroviário. O comando militar soviético, no que lhe concerne, custou a acreditar na prioridade alemã ao Cáucaso. Imaginavam uma nova ofensiva contra Moscou, que partiria do sul. Então, para os soviéticos a defesa de Stalingrado representava uma forma de deter nova incursão em direção à sua capital.

                  Diante do novo avanço alemão a Ordem 277 foi decretada pelo comando soviético para evitar novos recuos. Intitulada “Nenhum passo atrás” a ordem penalizava comandantes e oficiais que ordenassem retiradas de tropas sem autorização superior. Mas ao contrário do ano anterior, quando os soviéticos recuavam e deixavam atrás muitos equipamentos e tropas como prisioneiros, desta vez as perdas foram mínimas e dois exércitos inteiros conseguiram recuar para a cidade e organizar sua defesa. De qualquer forma, o efetivo de defesa de Stalingrado era muito baixo, o General Chuikov tinha a sua disposição apenas 50 mil soldados e 45 tanques. Os combates entre o Don e o Volga, entre julho e agosto, já foram extremamente sangrentos, várias unidades, como Divisões e Batalhões, tanto alemães como soviéticos, estavam com menos da metade de seus efetivos iniciais.

                  Em 23 de agosto acontece o primeiro e devastador bombardeio alemão à Stalingrado. Foram despejadas mil toneladas de bombas incendiárias, destruindo 80% dos prédios da cidade e matando, neste único dia, mais de 40 mil pessoas. Os bairros residenciais, em sua maioria com casas de madeira, ficaram um deserto fumegante, apenas com as chaminés de alvenaria mantendo-se de pé. Mas a destruição da cidade resultou numa melhor facilidade para sua defesa. Os escombros de prédios e casas prejudicavam o trânsito de blindados e demais armas pesadas, facilitando a luta homem-a-homem e a ação de franco-atiradores. Chuikov preparou seus homens e mulheres para uma luta urbana. Digo mulheres, pois havia mais de 800 mil delas no efetivo de todo o exército soviético. Em Stalingrado as mulheres atuaram na defesa aérea e em várias outras unidades.

                  A ideia era resistir a qualquer custo, transformar cada casa e cada andar de edifício num ponto fortalecido de defesa. A  estratégia era abraçar o inimigo, as tropas soviéticas se mantinham a curtíssima distância, o espaço de arremesso de uma granada, como dizia Chuikov. Os alemães foram conduzidos para uma luta corporal sem poder empregar a velocidade e eficácia de seus blindados, nem sua superioridade aérea, pois grande era a chance de atingir suas próprias tropas, que em setembro entravam na cidade. Entre setembro e novembro de 1942 os soviéticos resistiram em vários pontos da cidade: a colina Mamayev, o Elevador de Grãos, as fábricas Outubro Vermelho e Barricadas, a Estação Ferroviária Central, estes locais mudaram de ocupantes várias vezes, numa luta encarniçada incessante. Um prédio de quatro andares, chamado de “Casa de Pavlov”que ficava no centro da cidade, a 200 m da costa do Volga, foi guarnecido por um grupo de duas dezenas de soldados comandados pelo sargento Yakov Pavlov, sua resistência contínua por 60 dias até a chegada de reforços serviu para aumentar o desânimo dos alemães pelo que consideravam uma resistência “fanática” e “irracional”. Do alto de alguns prédios, franco-atiradores abatiam oficiais e soldados alemães que tentavam mostrar suas caras para ver o horizonte.

                    No sul o outro grupo de exércitos alemães enfrentava problemas crescentes. Em final de setembro o avanço alemão no Cáucaso já tinha chegado ao máximo. As forças nazistas não conseguiram aproveitar as reservas petrolíferas de Maikop, que foram incendiadas pelas tropas soviéticas em retirada. A região petrolífera de Grozni não foi tomada e a principal delas, Baku, no Azerbaijão, estava ainda muito longe do alcance alemão. Crescia a resistência do exército vermelho nas regiões mais montanhosas do Cáucaso.  A enorme extensão geográfica do front, a escassez de forças e os problemas crescentes de abastecimento (tanto pela falta de petróleo como pela atividade crescente dos partisans) fazia com que os alemães se sentissem atolados no Cáucaso e na cidade de Stalingrado, que teimava em resistir.

                   Em início de novembro a temperatura caiu brutalmente, iniciando as primeiras nevadas. As forças soviéticas dentro da cidade resistiam em menos de 10% do espaço urbano, eram abastecidas por barcos que atravessavam o Volga com mais tropas e suprimentos. Mas Chuikov tinha que manter a cidade com poucas tropas, os reforços chegavam em pequeno número, a conta-gotas. O comando soviético estava reservando tropas e equipamentos para uma ofensiva de surpresa, que se desencadeou em 19 de novembro de 1942, bem longe da cidade.

    O cerco e a formação do bolsão

                   A Operação Urano envolveu 1 milhão de soldados soviéticos que, em 4 dias, promoveram um longo cerco às tropas alemãs que estavam em Stalingrado. Eram tropas novas e bem equipadas. Ao longo dos meses de outubro e novembro estas forças foram sendo pacientemente acumuladas e camufladas (o que era difícil de se fazer nas estepes), para que os alemães fossem pegos de surpresa. Por conta do desgaste crescente e da pouca capacidade de reposição das tropas, os alemães tiveram que guarnecer os flancos ao norte e ao sul de Stalingrado com tropas húngaras, italianas e romenas, que possuíam equipamentos mais débeis que as tropas alemãs. E foram justamente estes flancos que foram atropelados pela poderosa ofensiva soviética que, antes de arremessar suas colunas de tanques T-34, castigaram as tropas do eixo com longa barragem de canhões e lançamentos de foguetes Katiúchas. As tropas partiram do norte, da frente Voronej e do sul de Stalingrado, se encontrando em 23 de novembro em local próximo à ponte ferroviária de Kalash no rio Don, a 80 km de Stalingrado. No cerco ficaram mais de 300 mil alemães e outros soldados do eixo atolados na cidade. Em poucos dias o front ficou mais de 200 km distante do bolsão onde se encontravam os nazistas. O comando alemão não tinha como evacuar 300 mil soldados. Faltavam suprimentos como forragens para cavalos e combustíveis para seus blindados. A Luftwaffe, força aérea alemã, se responsabilizou por abastecer as tropas cercadas por uma ponte aérea. Mas das 300 toneladas diárias para a manutenção das tropas, não conseguiam entregar nem 50 T\dia. A Luftwaffe havia perdido a superioridade aérea. Muitos aviões de abastecimento foram abatidos pela defesa aérea e pela crescente atividade da aviação de caça soviética. Os soldados alemães cercados passaram a sofrer de crescente fome e escassez de munições, 20 mil cavalos foram sacrificados para alimentar as tropas.

                   O cerco vai sendo apertado durante o mês de dezembro de 1942. O General Von Meinstein parte do sul da Ucrânia para uma operação de furo do cerco, mas próximo ao Natal de 1941, retrocede pela crescente resistência soviética e incapacidade das tropas cercadas de romperem o caldeirão. Em dezembro, com a Operação Pequeno Saturno, os soviéticos se aproximam de Rostov e todas as tropas alemãs que estavam no Cáucaso retrocedem para a Ucrânia. Ao final do ano os alemães tinham retrocedido às posições que ocupavam antes de agosto de 1941. Todo o esforço ofensivo fora frustrado, e ainda havia centenas de milhares de soldados do eixo cercados em Stalingrado, subsistindo nas condições mais difíceis. As ordens do comando alemão eram para o 6º. Exército resistir a qualquer custo, mas a 31 de janeiro de 1943, quando as forças soviéticas se aproximaram do QG do Marechal Von Paulus, a rendição foi anunciada. Nos dias seguintes se apresentaram 95 mil alemães.

                  A notícia da vitória em Stalingrado repercutiu em todo o mundo. A quebra do mito da invencibilidade das tropas nazistas, o fracasso de uma ofensiva gigantesca tornou esta batalha um ponto de virada na II Guerra Mundial. Se no ano anterior, frente a Moscou, ficou claro que a Alemanha Nazista não ganharia a guerra, com Stalingrado ficou claro que perderia. A capacidade de luta e o desprendimento dos soviéticos foi determinante para a vitória. A vitalidade e a agilidade da economia socialista, com todos os seus problemas, foram superiores à economia e à indústria alemã. Os desafios humanos e industriais foram vencidos. No Brasil, antes mesmo do final do cerco, o poeta Carlos Drummond de Andrade deixava registrado o significado desta batalha e desta resistência:

    “(…) Stalingrado, quantas esperanças!

    Que flores, que cristais e músicas o teu nome nos derrama!

    Que felicidade brota de tuas casas!

    De uma apenas resta a escada cheia de corpos;

    De outras o cano de gás, a torneira, uma bacia de criança.

    Não há mais livros para ler nem teatros funcionando nem trabalho nas fábricas,

    Todos morreram, estropiaram-se, os últimos defendem pedaços negros de parede,

    Mas a vida em ti é prodigiosa e pulula como insetos ao sol,

    Ó minha louca Stalingrado!

    A tamanha distância procuro, indago, cheiro destroços sangrentos,

    Apalpo as formas desmanteladas de teu corpo,

    Caminho solitariamente em tuas ruas onde há mãos soltas e relógios partidos,

    Sinto-te como uma criatura humana, e que és tu, Stalingrado, senão isto?

    Uma criatura que não quer morrer e combate,

    Contra o céu, a água, o metal a criatura combate,

    Contra o frio, a fome, a noite, contra a morte a criatura combate, e vence.

    Cidades podem vencer, Stalingrado!

    Penso na vitória das cidades, que por enquanto é apenas uma fumaça subindo do Volga.”

    Carta a Stalingrado (A Rosa do Povo)

    Bibliografia:

    BEEVOR, Antony. Stalingrado, o cerco fatal. Rio de Janeiro: Record, 2002.

    GLANTZ, David; HOUSE, Jonathan. Confronto de Titãs. Como o exército vermelho deteve Hitler. São Paulo: C&R Editorial. 2009.

    JUKOV, G.K. Memórias e reflexões. Tomo II. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2016.

    VASILEVSKI, A. La causa de toda mi vida. Moscou: Ed. Progresso, 1975.

    WERTH, Alexander. Stalingrado: 1942 – o início do fim da Alemanha nazista. São Paulo: Ed. Contexto, 2014.

    Texto originalmente publicado em: http://acoluna.org/2021/02/02/uma-fumaca-subindo-no-volga-78-anos-de-batalha-interminavel-de-stalingrado/


  • UM BELO LIVRO SOBRE O CAMPESINATO BRASILEIRO

    Publicado em 27/12/2020 às 15:27

    Há obras que vem para ficar. Certamente é o caso de “Torto Arado”, um belo livro de Itamar Vieira Júnior. Neste romance histórico temos traços fundamentais da alma do povo brasileiro. A história se passa em uma fazenda no sertão da Bahia, região da Chapada Diamantina. A narrativa é montada através da história de duas irmãs muito próximas, Belonísia e Bibiana, que cimentam uma relação de vida compartilhada depois de um acontecimento traumático na infância. Elas são de uma família de trabalhadores rurais, moradores de um latifúndio – a fazenda Água Negra, na qual o dono e sua família quase nunca aparecem. Ali vive uma comunidade de trabalhadores que alterna o trabalho para o latifúndio e as roças e cuidados com seus quintais de subsistência. São descendentes de escravizados que vivem uma experiência muito próxima ao cativeiro. Trabalham em troca do precário direito à moradia, quase não vendo a cor do dinheiro.

    Os espaços domésticos nem sempre eram respeitados. Nas épocas de seca até os produtos dos quintais familiares eram tomados pelo capataz da fazenda. Os moradores tinham um compromisso oral com o patrão que permitia a existência das roças familiares e construção de casas, mas proibidas as de alvenaria, eram feitas de pau-a-pique e barro, com telhados de palha. A precariedade era a marca da existência. A comunidade da fazenda reconhece no pai das meninas, Zeca Chapéu Grande, uma liderança espiritual importante. Zeca animava as brincadeiras de Jarê, que são momentos importantes na vida da comunidade. Com essas brincadeiras se comunicam com os espíritos encantados, com manifestações do além que possuem uma relação íntima com os vivos. Não se trata de um “realismo fantástico”. Aqui a literatura imita a vida. Zeca Chapéu Grande tinha a capacidade de incorporar os encantados e tratar de todos os tipos de doenças. A comunidade possuía benzedeiras, milagreiros e conhecedores de propriedades de ervas vivem num mundo onde a espiritualidade e a saúde caminhavam juntas. É uma particular associação de práticas religiosas africanas e indígenas encontradas no interior (e muitas vezes nas capitais) de todo o Brasil, descritas com uma naturalidade de quem já viveu neste universo.

    Os anos se passam e mudam os trabalhadores (e os patrões). Morre o antigo proprietário e a fazenda passa por mudanças profundas na administração, iniciando com a proibição de novos sepultamentos. Na experiência dos trabalhadores rurais brasileiros o direito à sepultura não é algo secundário. Os processos de despejo de famílias de moradores começam com a proibição de sepultamento. Ser sepultando no chão onde se trabalhou e arrancou seu sustento, onde viveram seus ancestrais, onde foram enterrados os umbigos de seus filhos e netos, é uma espécie de direito sagrado da comunidade. Não é por acaso que as primeiras associações de lavradores, chamadas de “Ligas Camponesas”, tinham como pauta inicial não só a resistência aos despejos, diminuição do pagamento dos foros, mas o direito a sepultar seus mortos, tal como aparece no documentário “Cabra Marcado para Morrer”, de Eduardo Coutinho. O destino ao corpo no fim da vida representa a dignidade para este indivíduo e seus familiares.

    Isso tudo ajuda a explicar a continuidade e a permanente relevância da luta pela terra no Brasil. Trata-se não só de um imperativo de justiça, mas uma necessidade elementar de qualquer sociedade que se pretenda minimamente democrática. A grande propriedade fundiária é um dos fatores fundamentais para a reprodução dos laços de opressão, miséria e clientelismo, a perpetuação da precariedade de vida entre as populações rurais e em boa parte da população urbana que se abrigou nas favelas. A modernização do latifúndio, que hoje porta o nome elegante de agronegócio, que aparece na parte final do romance, demonstra a cruel relação de despejo e violência que vemos atualmente em todas as unidades da Federação.

    O livro possui várias dimensões na descrição da vida dos camponeses negros. Há uma dimensão histórica, com as gerações se sucedendo na terra de Água Negra, desde a época da mineração dos diamantes até a atualidade, mostrando suas relações, conflitos e lutas por sobrevivência. Há uma dimensão dramática e trágica, vivida pelos diferentes personagens que são apresentados, que se renovam a cada geração, com conflitos familiares, histórias de amizades e amores, de solidão e de relações que se desfazem. Há uma dimensão do conhecimento ambiental, aparecendo com a pesca nos rios da região, a coleta do dendê e a arte agricultura passada dos pais aos filhos. Há uma dimensão feminina, presente nos relatos e no protagonismo de Salustiana, das meninas e de outras mulheres, inclusive das encantadas, que não são exatamente sobrenaturais, mas formas de conhecimento, antigas experiências, personagens portadoras de consciência histórica de lutas. Além de Belonísia e Bibiana, o livro possui outra narradora, uma encantada, que mostra diferentes aspectos das vidas desta comunidade e partes decisivas do desfecho final. A obra é muito bem escrita e ambientada. Quase sentimos os cheiros das ervas do jardim de Zeca Chapéu Grande, da batata doce no café da manhã, do transporte de dendê para a cidade, para obter uma pequena renda. Há luta e esperança, há uma nova geração de agricultores que conhece as cidades, a política e os sindicatos. Há conflitos entre evangélicos e os moradores da fazenda.  Há a vida de professora rural e as condições das escolas do interior. Há os pistoleiros em ação. Milhares de fazendas, como Água Negra, existem no presente.

    O autor é geógrafo e funcionário do INCRA, com Doutorado pela Universidade Federal da Bahia. O livro recebeu o Prêmio Leya, em Portugal e o Prêmio Jabuti, de melhor romance literário, foi lançado em 2018 e já se encontra na terceira reimpressão. Desconfio que a maioria dos conhecimentos e experiências descritas não provém tanto de sua formação acadêmica, mas muito mais por experiências de vida e trabalho. Em todas estas dimensões do livro, algo em comum reúne a narrativa: o desafio da comunicação entre as pessoas, principalmente da comunicação entre iguais. A história das duas irmãs – que se interpretam e se adivinham – não deixa de ser uma metáfora das necessidades dos trabalhadores. Por diferentes razões, há os que não possuem voz, mas que se fazem ouvir por atitudes frente à vida e ao mundo. Um livro de alta qualidade!

    Resenha publicada em A Coluna: http://acoluna.org/2020/12/26/um-belo-livro-sobre-o-campesinato-brasileiro/?fbclid=IwAR2cXra2nvgTk3c8FXLbSRvnsMt0LuAw_QeF4kRYJibfr7H2HjheLWP0xC0

    Título do Livro: Torto Arado

    Autor: Itamar Vieira Junior

    Editora: Todavia, São Paulo.

    Ano de publicação: 2018

    262 páginas.